O início da batalha
A ministra Tereza Cristina, da Agricultura, resiste à tesoura de Paulo Guedes dando mostra de que pôr em prática a agenda liberal não será nada fácil
Apesar das promessas ambiciosas e otimistas da equipe econômica do governo Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes sempre soube que enfrentaria resistências a seus planos de austeridade fiscal, derrubada de barreiras fiscais e corte de subsídios ao setor produtivo. Houve um ensaio de reação por parte da máquina pública quando foi anunciado, ainda durante a transição, em novembro, o fim do Ministério do Trabalho, mas nada que tirasse o sono do superministro da Economia. Na semana passada, no entanto, Guedes bateu de frente pela primeira vez com um adversário do alto escalão. A experiência não foi boa para ele.
A encrenca começou quando Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, disse que recebera orientação para acabar com a carteira de crédito rural que conta com subvenções do Tesouro. O grosso da atividade agrícola poderia se financiar a taxas de mercado — o BB é responsável por 59% do financiamento do setor. A resposta de Tereza Cristina, nomeada ministra da Agricultura justamente por já ter liderado a bancada ruralista no Congresso, foi dura: “Vamos quebrar a agricultura? É esse o propósito?”. Já era um sinal de que Guedes não teria facilidades pela frente, mas foi seu movimento seguinte que mostrou o limite de seu poder.
Guedes determinou que a Secretaria Especial de Comércio Exterior extinguisse a taxa de antidumping para a importação de leite em pó oriundo da Europa e da Nova Zelândia. Tereza Cristina não descansou enquanto não convenceu o presidente, ainda em convalescença no hospital, a desautorizar a medida: seu ministério compensou a extinção da taxa com um aumento no imposto de importação do produto de 28% para 42,8%, e Bolsonaro, depois de negar a informação divulgada em primeira mão pela coluna Radar, de VEJA, postou a notícia no Twitter com uma foto da ministra.
Não é sem um tanto de cálculo político que Bolsonaro cedeu à pressão do agronegócio no episódio da taxa do leite em pó, derrotando seu superministro da Economia. A prioridade do governo — e, principalmente, de Guedes — é a reforma da Previdência. Por se tratar de uma emenda à Constituição, o projeto só vai prosperar se tiver o apoio de pelo menos 308 dos 513 deputados e de 49 dos 81 senadores. Sem o aval dos 200 parlamentares ligados à bancada ruralista, a empreitada não avança. Mesmo que a atitude de Bolsonaro seja um golpe na agenda liberal da equipe econômica que promete abertura do país à concorrência internacional, a derrota de hoje pode significar a vitória de amanhã no xadrez político de Brasília.
Inflada pelo apoio explícito do presidente, a bancada ruralista já avança para defender outras bandeiras contrárias à austeridade. Num de seus últimos atos no Planalto, o presidente Michel Temer cancelou um subsídio anual de 3,4 bilhões de reais que agricultores recebiam na forma de descontos na conta de luz — o valor era repassado a todos os consumidores de energia do país. O deputado Heitor Schuch (PSB-RS) apresentou agora um projeto para retomar o auxílio como um incentivo à irrigação.
O cálculo das vantagens e desvantagens dos subsídios agrícolas para a sociedade brasileira não é trivial. Representantes do agronegócio argumentam que são responsáveis por 19 milhões de empregos no país, e o setor responde por 23% do PIB nacional. Existe ainda a ponderação de que a produção de alimentos é estratégica para o Brasil, e deve ser protegida. A ortodoxia econômica dita que a subvenção governamental distorce os preços e altera as decisões de produção: fazendeiros deixam de investir no aumento de produtividade porque têm um custo artificialmente baixo e também apostam em lavouras menos lucrativas, o que em última instância gera menos renda e emprego do que potencialmente poderia. Pior, o contribuinte paga duas vezes pelo mesmo produto: primeiro com os impostos para bancar os subsídios, depois quando vai ao supermercado. A discussão é encruada no mundo inteiro, e os agricultores afirmam, com razão, que o Brasil dá menos auxílio ao setor do que seus pares internacionais: entre 2015 e 2017, o subsídio no país não chegou a 5% da receita bruta do setor agropecuário, enquanto EUA e União Europeia subsidiam, respectivamente, 10% e 20% do valor final da produção, de acordo com a OCDE. Mesmo com menos ajuda do governo, a agropecuária foi responsável por 42,4% da receita das exportações brasileiras, num total de 101,7 bilhões de dólares em vendas ao exterior no ano passado.
O centro da discussão atual é a oferta de crédito rural com juros subsidiados pelo Tesouro Nacional. Como forma de incentivar e baratear o agronegócio, a União arca com a parcela referente à diferença entre os juros cobrados pelos bancos e os que acabam sendo pagos efetivamente pelos produtores rurais. Em 2016, o último dado disponível, foram gastos 13,7 bilhões de reais do Tesouro com diversas subvenções ao setor, que incluem incentivos à compra de maquinário e estocagem de etanol para manipular seu preço. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que recorre ao Tesouro para cobrir parte dos juros nos empréstimos aos pequenos produtores, corresponde a 45% desse total. Segundo especialistas consultados por VEJA, trata-se de um subsídio fundamental para que esses fazendeiros consigam financiar as safras. “Sem os subsídios, os pequenos produtores seriam obrigados a praticar os juros de mercado, e eles não teriam condições de arcar com esse nível de taxa”, explica Fernando Pimentel, sócio da consultoria Agrometrika. As intempéries a que está exposta a agricultura — o clima e as pragas — elevam o risco do investimento e fazem com que os bancos se protejam da inadimplência com taxas mais altas. Uma quebra de safra, afinal, inviabiliza o pagamento do empréstimo.
A ministra Tereza Cristina afirmou que está disposta a discutir uma transição gradual do modelo atual, de crédito agrícola subsidiado, para outro, de seguro rural — que tem a vantagem de sair mais barato para os cofres públicos e derrubar os juros de mercado ao mitigar o risco de calote. Não é o que Paulo Guedes tinha em mente. Resta saber como ele pretende dobrar a ministra, convencer o presidente e ainda levar os votos no Congresso para suas reformas.
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622
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