O índice econômico que impede a virada sonhada por Bolsonaro
Apesar de surpresas positivas na economia, a inflação acumulada e a inadimplência recorde, resumidas em índice de miséria, prejudicam o governo

A melhora econômica refletida em diversos indicadores, divulgados nas últimas semanas, não tem se traduzido na virada das intenções de voto para presidente, como a entourage de Jair Bolsonaro (PL) esperava. Segundo o agregador de pesquisas de VEJA, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantém a dianteira confortável, na casa dos 43% dos votos, enquanto Bolsonaro segue por volta dos 33%, cenário que se mantém há mais de um mês, desde o início oficial da corrida eleitoral.
A economia era vista como o grande tema desta eleição. Depois de um começo de ano preocupante, agora o governo tem números para apresentar e mais fáceis de defender, depois da aprovação da PEC das Bondades para dar benefícios sociais às vésperas do período eleitoral. O PIB do segundo trimestre cresceu 1,2%, acima das expectativas do mercado. Em julho e agosto, houve deflação no IPCA (e pode vir outra em setembro), refletindo principalmente a queda no valor dos combustíveis beneficiados pela baixa da cotação internacional do barril de petróleo e pela redução do ICMS promovido pelo governo. O desemprego recuou da casa dos dois dígitos, para 9%, com recorde em ocupação, de 98 milhões de pessoas.
São números inequivocadamente bons, e acima das expectativas de meses atrás. Mas, diferentemente do que esperavam os políticos próximos do presidente que defenderam a criação de um teto para o ICMS, a concessão do Auxílio Brasil e depois o seu aumento para 600 reais a partir de agosto, às vésperas do início da campanha, isso não se traduziu num empate técnico com o rival nas pesquisas já antes de setembro. Para eles, a melhora econômica falaria por si. E rapidamente se transformaria em mais intenções de votos para Bolsonaro. No entanto, não foi o que aconteceu até o momento.
Em levantamento feito pelo BTG Pactual e Instituto FSB Pesquisas, em abril, 62% dos eleitores afirmavam que a economia estava vivendo um momento ruim e com dificuldades de superar. O índice foi caindo até a casa dos 50% em agosto, e vem oscilando dentro desse patamar, desde então. As explicações, pelo lado estritamente econômico, para o efeito menor que o esperado são muitas.
Por exemplo, a deflação dos últimos dois meses, que fez a inflação acumulada em 12 meses baixar de 11,89% para 8,73%, foi muito concentrada em itens não consumidos pelos mais pobres. Enquanto a gasolina recuou 9,20% e o etanol 10,39% nos últimos 12 meses, ajudando os donos de veículos, o custo da alimentação cresceu 13,43% no mesmo período, algo que ajuda a explicar a existência de 33,1 milhões brasileiros vivendo em insegurança alimentar, de acordo com o levantamento da rede Penssan. “A deflação é sentida por famílias de alta renda, por conta do combustível e da energia. Mas os mais pobres não consomem gasolina e já tinham subsídios na conta de luz”, diz o economista André Braz, especialista em inflação do FGV-IBRE. “E um detalhe muito importante sobre os preços é que o comportamento atual não apaga o histórico recente e a sensação de grande parte da população.”
De fato, a inflação acumulada pelos últimos dois anos causou dificuldades que não desaparecem rapidamente, como o rendimento real do trabalho ter caído no último ano, apesar da melhora no trimestre encerrado em julho, e o índice recorde de 79% das famílias endividadas, sendo que 29% estão com dívidas em atraso. “Muitas famílias estão se endividando justamente para comprar alimentos, parcelando compras em três vezes no supermercado. Essa inadimplência tem um poder de barril de pólvora”, explica José Pastore, especialista em relações do trabalho e professor da USP.
Por fim, o Auxílio Brasil de 600 reais tem hoje menor poder de compra do que o auxílio emergencial, pago com o mesmo valor, no começo da pandemia, entre setembro a dezembro de 2020. Mesmo naquela época, foram necessários alguns meses para esse benefício se refletir em melhora da percepção do governo. Desta vez, a sensação é de que o Auxílio Brasil turbinado precisaria de mais que dois meses para fazer efeito no mesmo grau. A campanha de Bolsonaro necessita de um tempo adicional. “Até agora a economia atrapalhou Bolsonaro. Enquanto não houver aquecimento de fato e estabilização nos níveis de emprego e de renda, a desconfiança vai continuar muito grande. É um pêndulo, ora melhora e ora piora e vemos isso em alguns setores, uns crescendo, como o de serviços, e outros como o varejo experimentando decréscimo”, analisa o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV. “Está todo mundo em compasso de espera. A melhoria da economia não chegou a tempo de reverter os votos, assim como as medidas de Auxílio Emergencial não foram suficientes para tornar Bolsonaro favorito à eleição.”
Tudo isso pode ser traduzido num dado chamado de índice de miséria. Criado pelos economistas João Saboia, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e por João Hallak Neto, do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon-RJ), foi inspirado no índice de mesmo nome elaborado pelo economista americano Arthur Okun (1928-1980) na década de 1960 para calcular o impacto da economia na sensação de bem-estar das pessoas. Os brasileiros, porém, adicionaram mais variáveis às taxas de inflação e de desemprego, aqui divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Eles acrescentaram ao cálculo o índice de inadimplência da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e a Renda Média da Força de Trabalho. Com uma média dessas quatro variáveis, foi possível concluir que a sensação de mal-estar do brasileiro chegou a 80,9 no último trimestre de 2021, o pior nível desde 2012. Na época, o índice foi influenciado principalmente pela renda média mais baixa do período, quando benefícios dados pelo governo como o auxílio emergencial já haviam se esgotado e o Auxílio Brasil ainda não havia se iniciado. “O governo demorou muito para substituir o programa e quando ele veio as pessoas já estavam sofrendo muito”, diz o pesquisador João Saboia.
Nos meses que se seguiram, o índice de miséria começou a cair e atingiu 75,9 no segundo trimestre de 2022, mas se mantém em níveis historicamente altos. A variável que mais cresceu no período foi o índice de inadimplência, que de acordo com os últimos dados divulgados pela CNC atingiu em julho 63 milhões de pessoas, o maior em oito anos. No índice de miséria, no entanto, este crescimento foi neutralizado pela queda da inflação, consequência das medidas feitas pelo governo Bolsonaro às véspera das eleições, como a desoneração de impostos sobre combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. “As medidas de maior impacto na sensação de bem-estar da população chegaram muito em cima das eleições”, diz Saboia. Agora, resta ao titular do Palácio do Planalto tentar levar a disputa para o segundo turno e ganhar mais tempo para tentar colher uma percepção melhor da situação econômica.