O dispositivo que permitiu a compra da vacina de Oxford e minou a Pfizer
Governo previa transferência de tecnologia para produção de imunizantes no país: algo possível na negociação da AstraZeneca, mas não da Pfizer
Um mesmo mecanismo, que se provou fundamental para o sucesso da assinatura do contrato firmado entre a AstraZeneca e a Universidade de Oxford com a Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, acabou sendo também um entrave nas negociações para a compra de vacinas da americana Pfizer. Temendo o Tribunal de Contas da União, o TCU, o governo arranjou diversas desculpas para o fracasso nas conversas com o laboratório americano, desaguando na risível comparação do presidente Jair Bolsonaro a respeito de que vacinas da categoria desenvolvida pela Pfizer tornariam pessoas em jacarés e também na tentativa de se justificar por meio de críticas ao que chamou de “cláusulas leoninas” no contrato, vindas do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Os entraves, entretanto, começaram num gabinete do Ministério da Economia, que buscava soluções contratuais para a transferência de tecnologia para a produção de vacinas no Brasil. O ministro Paulo Guedes delegou ao secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, o papel de negociar os ditames para a transferência de tecnologia para a fabricação de imunizantes. A Economia, é verdade, não é responsável pela análise de compra ou não de determinado medicamento, mas, sim, de garantir a possibilidade da aquisição. Secretário adjunto e número dois de Costa, Bruno Portela foi o responsável pela elaboração do mecanismo que proporcionou a parceria entre a Fiocruz e a Universidade de Oxford. Ele é um dos criadores das chamadas emendas tecnológicas, as Etecs, que permitem não apenas a encomenda de produto tecnológico, mas também a transferência de tecnologia.
A ideia fundamental por trás do mecanismo envolve o fato de não se comprar um item, mas um processo tecnológico e emular a sua produção. “Para que o governo possa fazer a compra de algum produto, este processo tem de passar por licitação e ser um produto testado e conhecido. Com a Covid, teve a figura da compra emergencial, mas ainda assim precisava existir o tal produto e ter quantidade previsível”, diz Carlos da Costa a VEJA. “Quando conversávamos sobre vacinação, a lei não permitia que comprássemos. A AstraZeneca podia não funcionar. O processo poderia demorar. A compra de medicamento biológico em estudos envolvia risco”, diz.
“Para lidar com tecnologias em desenvolvimento, sabendo do risco, fechamos a encomenda da tecnologia, não a compra de vacinas, mas aprendendo a desenvolver. Compramos uma quantidade significativa de insumos, como fizemos, por meio de uma Etec. Demos apoio, conversamos com a AstraZeneca para que o Ministério da Saúde, com competência deles, tivesse meios para a assinatura”, afirma ele.
O secretário representou o Ministério da Economia em diversas reuniões com ministros envolvidos diretamente na compra de vacinas e insumos e representantes de farmacêuticas. Entre elas, houve uma, em 2 de junho de 2020, com os ministros da Saúde, Eduardo Pazuello, das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, da Casa Civil, Walter Braga Netto, e da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, sobre a adesão do país ao consórcio Covax, que prevê acesso global aos imunizantes. Já no dia 16 de junho, ele recebeu representantes da AstraZeneca para ouvir sobre a evolução dos trabalhos a respeito da vacina e apresentou as diretrizes da Etec. A solução foi bem recebida. O resto é história: o país consolidou a parceria com o laboratório para que a Fiocruz produzisse as vacinas.
Carlos da Costa minimiza a sua atuação, dizendo que a Sepec é responsável pelos diálogos entre o governo e o setor privado. Desde então, o secretário acompanhou o desenvolvimento da vacina, frequentando encontros na sede da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Mesma proposta de encomenda tecnológica foi apresentada à Pfizer em 7 de agosto, quando o presidente da empresa no país, Carlos Murillo, foi recebido pelo secretário para apresentar sua vacina. “A empresa procurou o ministério para informar sobre a sua tecnologia criada para a produção da vacina contra a Covid-19, o que incluiu o estágio de desenvolvimento (testes clínicos em curso) e tecnologia inovadora envolvida. A empresa americana foi informada na reunião que não cabe ao Ministério da Economia decidir sobre a compra de determinada vacina, pois se trata de uma decisão de Saúde Pública. Na ocasião, a Sepec também esclareceu sobre os instrumentos possíveis de contratação do Poder Público que envolvem transferência de tecnologia, principalmente aqueles previstos no Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, a exemplo de Encomenda Tecnológica”, diz a ata da reunião, enviada à Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI, que investiga as responsabilidades do governo federal na gestão da pandemia.
“A Pfizer veio como empresa, pediu reunião para apresentar o processo de desenvolvimento tecnológico da vacina que estavam produzindo. Disseram que estavam negociando com a Saúde, e mostraram tecnologia nova, baseada em RNA mensageiro. Perguntamos se haveria interesse em realizar os contratos por meio de Etecs, mas a resposta foi negativa para a transferência de tecnologia. Respondi, então, que desejava sorte no desenvolvimento dessa vacina e que os resultados nas negociações com a Saúde fossem os melhores”, diz o secretário a VEJA. Assessores do ministro Guedes comparam as reuniões com quaisquer outros setores que procuram o Ministério da Economia. “Era uma reunião com uma empresa, seja do setor de serviços, seja elétrico ou de transportes. Recebemos todos, da mesma forma”, diz um auxiliar.
Depois desta reunião da Economia com a Pfizer, a empresa americana continuou a negociar com o Ministério da Saúde – com toda a dificuldade exposta pelo ex-presidente da companhia na CPI da Pandemia – e assinou o contrato apenas em março de 2021. O acordo envolve o fornecimento de 100 milhões de doses do imunizante. Mas, pressionado a demonstrar à sociedade interesse na compra de insumos depois que a Coronavac encomendada pelo governador João Doria já havia chegado ao país, o governo federal, enfim, convenientemente se esqueceu do ponto original de todas as dificuldades para o fechamento do contrato de compra e ele foi feito sem transferência de tecnologia.