‘O digital será melhor que o presencial’, diz Roberto Valério, CEO da Cogna, sobre educação
Segundo o empresário, tecnologias como ensino a distância e o uso de inteligência artificial aceleram a transformação

Filho de um engenheiro e uma professora, Roberto Valério começou a carreira trabalhando próximo ao caminho paterno, na Unilever, uma indústria. Mas se diferenciou do pai ao escolher o curso de administração de empresas em vez da engenharia. A evolução profissional o levou à área materna, a da educação, da qual hoje diz gostar muito. Pudera: desde 2022, ele preside a Cogna, o maior grupo de serviços de ensino do Brasil, com receita líquida de 6,4 bilhões e lucro de 880 milhões de reais em 2024. O cargo representa a realização de uma meta que traçou ainda adolescente: “Eu defini que queria ser um CEO”. A inspiração veio da leitura da biografia de Lee Iacocca (1924-2019), executivo que se tornou lendário por ter presidido duas montadoras americanas rivais, a Ford e a Chrysler. Após ter passado por temporadas na Sky-Direct TV e no Bradesco, Valério foi recrutado para trabalhar nas faculdades Anhanguera, onde pela primeira vez ascendeu ao posto de CEO, em 2013, aos 36 anos. No processo de consolidação do setor, a empresa foi absorvida pela Kroton, formando parte do que é o grupo Cogna. Nos anos recentes, a pandemia, a expansão do ensino a distância e o advento de tecnologias como a inteligência artificial estão entre os desafios que teve de encarar. Ele considera que os resultados têm sido bons, como disse numa conversa exclusiva, cujos trechos principais estão a seguir.
O setor de educação foi um dos mais baqueados pela pandemia que eclodiu em 2020. Qual foi o efeito sobre a Cogna? Em 2020, queimamos 200 milhões de reais de caixa. A gente tinha se endividado para comprar a Somos, os juros tinham subido e veio a pandemia. Nossa alavancagem (endividamento) foi para 3,3 vezes o Ebitda (lucro antes de juros, impostos e depreciação).
Como saíram dessa fase? Eu recebi a missão de reestruturar a Kroton, nossa frente de ensino superior e maior negócio do grupo, hoje com 1,2 milhão de alunos só na graduação. Ela estava vindo de uma etapa de aquisições e expansão orgânica grande. Em dois anos, saíra de 110 campi para 170. Com a pandemia, os alunos não iam mais às aulas. Então, tivemos de fechar 35% das unidades. E desligamos muita gente para que a empresa parasse de queimar caixa e voltasse a ser rentável. A receita diminuiu, mas aos poucos a geração de caixa e depois o crescimento foram recuperados.
E para os alunos, como foram as mudanças? Temos duas formas de oferecer educação: presencial em unidades próprias ou semipresencial em polos de educação franqueados. Fechamos unidades, mas transferimos alunos aos polos, parceiros nossos. Com isso, reduzimos o capital investido, colocando os alunos na infraestrutura dos polos, e demos parte da receita aos parceiros. Isso ao menos estancou a perda de caixa. Aí saneamos o perfil de crédito dos alunos, pois havia muitos inadimplentes. Mudamos o modelo de captação de alunos, agora mais restrito.
Quais são os indicadores dessa recuperação? Em 2020, o nosso Ebitda era de 640 milhões de reais. No ano passado, a gente fechou com praticamente 2,2 bilhões. A alavancagem caiu para 1,2 em relação ao Ebitda. A empresa é saudável e está em uma posição muito melhor do que estava há quatro anos.
“Nossa estratégia é ser asset light: ter menos prédios e escolas, e mais alunos digitais e sistemas de ensino”
O alívio no investimento foi particularmente importante? A nossa estratégia é asset light, deixar de ter prédio e passar a ter mais alunos digitais, e deixar de ter escola e ter mais sistemas de ensino. O Anglo é o mais conhecido deles, mas temos o PH, o Amplia, o Pitágoras. E as marcas da Somos, de editoras: Ática, Saraiva, Scipione. Todas essas marcas produzem conteúdo para escolas particulares e agora para escolas públicas, porque a gente está começando a vender soluções de educação para governos estaduais e municipais, além de participar do Programa Nacional do Livro Didático. O nosso negócio não é mais ensino, são serviços educacionais. Fornecemos serviços mesmo para concorrentes, como a Universidade Mackenzie, e para o que chamamos de infoprodutores, gente como um médico ou um jurista que produz curso livre e vende pela internet. Esses clientes são cerca de 300. Há até parceria para pós-graduação, com a Me Poupe, em investimentos.
Qual é o foco atual de investimento? O nosso investimento hoje é mais em inovação. Refizemos os sistemas acadêmicos, construímos um negócio de alta tecnologia, parte usando produtos de terceiros, parte criada aqui, e a gente tem investido muito em inteligência artificial. Eu participo de um comitê que discute 120 projetos, desde os ligados a processos administrativos até os de novos produtos. A melhoria de aprendizagem é algo em que a gente tem investido bastante. Focamos também nas oito faculdades de medicina, um negócio que fatura 600 milhões de reais e pode crescer. O aluno é classe A, paga 12 000 reais por mês para estudar e vem das melhores famílias de cidades como Cuiabá e Campo Grande.
Como a tecnologia chega ao aluno? Com inteligência artificial estamos aperfeiçoando a adaptative learning, a educação personalizada. A educação a distância, com a tecnologia, vai ficando melhor que a presencial. À medida que o aluno estuda, faz exercícios, nossa ferramenta identifica em que áreas do conhecimento ele já tem profundidade. Para essas, o sistema não vai propor novos conteúdos. Mas vai propor exercícios, ilustrações, formatos diferentes de conteúdos nos temas que ele ainda não domina, ou que precisa de uma revisão. Inclusive se forem revisões do ensino médio, falhas de formação. Com essa tecnologia, as pessoas aproveitam melhor o tempo, estudam o que realmente precisam, no formato que preferem. Tem gente que gosta de ler, outros preferem assistir a videoaulas.
Isso é só para cursos superiores? Não, é uma capacidade aplicada em graduação, pós, preparatório para concurso público, educação básica. Temos desde a Red Balloon, uma franquia para ensinar inglês a crianças a partir de 2 anos, até cursos para quem tem 100 anos. Também usamos as ferramentas para guiar o professor quanto aos conteúdos que precisa oferecer a cada aluno. Podemos fazer muito para os professores. A minha mãe lecionou no ensino fundamental, e eu me lembro que no domingo à noite ela montava o plano de aula da semana, criava tarefas para os alunos, preparava ou corrigia provas. Hoje, ajudamos o professor a fazer isso com a nossa base de conhecimento.
E que base de conhecimento é essa? Uma base gigantesca, pois temos 100 anos de conteúdo de Saraiva, 75 anos de Anglo. Com ferramentas de inteligência artificial, produzimos ilustrações, provas, apresentações, vídeos. Posso fazer uma disciplina completa de um curso de licenciatura, ou um livro para um sistema de ensino, com a linguagem e a profundidade adequada a cada um deles. Mas o conhecimento é uma riqueza nossa, e temos usado muito a tecnologia para habilitar isso para a adaptative learning.
“A nova regra de EAD é boa, fixa o formato de cada curso. Com todos num só modelo, ganha quem executar melhor”
E se precisar de conhecimento que não há na sua base? A saída nunca é buscar na internet. Temos parceria com os grandes de tecnologia: Google para educação básica e Microsoft para ensino superior. A gente gosta de experimentar para conhecer os dois. E trouxemos o ChatGPT para um ambiente seguro, de modo que ele use a inteligência para interpretar uma questão, mas para responder só acessa a nossa base de conhecimento. É o que chamamos de Cogna AI, o ChatGPT embedado nos nossos conteúdos.
Há outros ganhos de eficiência com a tecnologia que chegam aos alunos? Já temos uma arquitetura que orquestra agentes de IA. São vários agentes com especialização, uma base de conhecimento específica. É um negócio que ajuda a oferecer personalização com alta qualidade. Por exemplo, o aluno está no ambiente virtual de aprendizagem e faz uma pergunta ao agente chamado Edu, de educação. Quer saber quando será a prova de matemática. O agente de atendimento se conecta ao agente administrativo, este vai à base de provas e diz, “a sua prova de matemática é no dia tal, às 9 horas da noite”. Se a pergunta for quando vence um boleto, ela é direcionada ao agente de atendimento financeiro para achar a resposta.
A educação a distância cresceu e o governo soltou regras novas. Como afetam o negócio? Há aumento do custo, mas pouco relevante. A nova regulação é positiva porque a anterior dependia de interpretação. Um curso de enfermagem podia ser 100% EAD, semipresencial ou presencial. O aluno ficava na dúvida. Agora só pode ser presencial, está fixado o formato de cada curso. Isso colocará todo mundo no mesmo modelo e quem executar melhor ganhará o jogo.
Qual a implicação de o perfil de aluno da Cogna ser mais da classe C? Na Anhanguera, nossa principal marca de faculdade, predominam as classes B menos e C, e há um pouco de D. Há aluno que é motoboy. Esse aluno requer que a gente fique em cima, dando apoio constante. Ele pode ter tido má formação. Com a tecnologia, ajudamos muitos a preencher lacunas e manter a motivação. Há sempre o risco de ele se desligar. Mas a nossa evasão caiu 7 pontos percentuais nos últimos quatro anos, agora é de 17%. E a taxa de formatura chegou a 56%, sendo que a da USP é de 60%. Por princípio, tentamos dar o máximo para a recuperação da aprendizagem. Mas é um negócio difícil numa sociedade que está mais preocupada em trocar o celular, botar um tênis novo, do que em pensar no futuro. Estamos só começando essa jornada.
Publicado em VEJA, junho de 2025, edição VEJA Negócios nº 15