O bônus de 1 trilhão de reais: os rumos nebulosos do fundo do pré-sal
Criado para distribuir a riqueza do petróleo, até agora ele é mais um caso de fortuna nacional desperdiçada
O presidente Lula poderia estar decepcionado com os rumos que as rendas bilionárias do pré-sal tomaram mais de uma década depois de sua descoberta, não estivesse ele próprio de volta ao Palácio do Planalto e com o comando desse oceano de dinheiro nas mãos. “O pré-sal é o nosso passaporte para o futuro”, disse ainda em seu segundo mandato, em um pronunciamento feito em 2008, dois anos depois de a Petrobras ter encontrado a gigantesca reserva de petróleo a mais de 7 000 metros abaixo da superfície do mar na costa brasileira. “Vamos investir seus recursos naquilo que temos de mais precioso: nossos filhos e nossos netos”, concluía. A camada do pré-sal se revelou, de fato, tão ou mais exuberante do que qualquer prognóstico mais otimista pudesse antever. O mesmo, porém, não pode ser dito da principal ferramenta de proteção para as riquezas cada vez mais robustas geradas por ela — o Fundo Social, uma poupança nacional criada por Lula em 2010 para preservar o dinheiro do petróleo e investir no desenvolvimento do país. Aos 14 anos de vida, o fundo não cumpriu o seu objetivo original e tomou rumos nebulosos, que permanecem incertos até hoje em dia.
O aspirante a fundo soberano brasileiro não tem gestor designado, nunca definiu seus planos de investimentos, foi desconfigurado por uma série de leis que vieram depois e já gastou quase toda a fortuna que recebeu — embora ninguém saiba direito como, já que seus mecanismos de divulgação e transparência são opacos. Em tempos de penúria nas contas públicas, o desperdício pode ser considerado ainda mais chocante. “Estamos falando de muito dinheiro e ninguém está olhando para isso”, diz o economista Beni Trojbicz, autor do livro Política Pública de Petróleo no Brasil.
Os números envolvendo essa poupança mal gerida são vultosos. De sua criação, em 2010, até 2023, o valor total de royalties e participações do petróleo depositados em sua conta somou 180 bilhões de reais, de acordo com uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU). No fim do ano passado, porém, restavam em caixa pouco mais de 30 bilhões de reais disso tudo. Cerca de 80 bilhões de reais teriam ido para a educação, obedecendo a uma lei de 2013 que definiu que 50% dos recursos deveriam ir para a educação básica e a saúde. Outros 64 bilhões de reais, por sua vez, foram usados em 2021 e 2022 para abater a dívida pública, projeto incluído pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, na PEC Emergencial. “A ideia do Fundo Social de transferir a renda petrolífera para a sociedade é mais do que justa”, diz Helder Queiroz, coordenador do Grupo de Economia da Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). “Mas, como ele carece de regulamentação até hoje, o uso de seus recursos acabou sofrendo uma série de desvios.”
O piso nacional da enfermagem, de 2022, o Pé-de-Meia, nova bolsa de Lula para estudantes de baixa renda, e parte do socorro ao Rio Grande do Sul, após as enchentes de abril, são outros remendos que vieram depois permitindo mais saques da poupança do petróleo. “Algumas destinações até são previstas, como o combate às mudanças climáticas, mas elas são feitas sem planejamento e foram acabando com o projeto inicial, de criar uma poupança de longo prazo”, afirma Ticiana Alvares, diretora técnica do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo. O marco legal do pré-sal, que criou o Fundo Social em 2010, determinava que apenas o valor de seus rendimentos seria usado para investir nas políticas públicas, uma inspiração no modelo do fundo do petróleo da Noruega, um dos maiores e mais bem-sucedidos do mundo. A legislação original também definiu as áreas estratégicas para onde esses recursos deveriam ir: educação, saúde, cultura, esportes, inovação e meio ambiente. Até o ano passado, porém, as quatro últimas dessa lista não tinham recebido um centavo sequer.
Se a primeira década do Fundo Social já foi bilionária, a segunda chegará perto do trilhão. A conta do TCU é que, de 2024 até 2032, quando a produção do pré-sal atingirá seu auge, o fundo receberá mais 930 bilhões de reais. Dali em diante, as projeções do próprio governo são de que a produção do megacampo, seguindo o destino inexorável de todo recurso natural não renovável, começará a declinar. “O volume de dinheiro por vir é estrondoso, mas ele não vai continuar por muito tempo”, diz o economista especializado em contas públicas Murilo Viana. “É por isso que a essência desses fundos é fazer bons investimentos e gerar renda ao longo do tempo, sabendo que suas receitas são voláteis e finitas.”
Para que o país não perca mais uma década, o TCU deu ao governo, em abril, um prazo de 180 dias para apresentar os projetos de regulamentação do Fundo Social. O prazo se encerrou em outubro e foi prorrogado por mais 100 dias. A exigência do tribunal inclui a criação dos dois comitês que deveriam ser os responsáveis pela gestão dos investimentos financeiros e sociais do fundo, um aparato que está previsto e pendente desde a lei que o criou. Um programa estruturado de aplicações financeiras, investimentos no exterior (para proteger as receitas das flutuações do dólar), definição de como financiar as áreas sociais e relatórios semestrais dos resultados são outros mecanismos também previstos na legislação e que seguem até hoje sem ser criados.
Procurada, a Casa Civil, braço do Executivo responsável pelo Fundo Social, informou por nota que, em resposta ao ultimato de regulamentação do TCU, “o governo federal está trabalhando com os órgãos envolvidos na elaboração de uma proposta”. Não respondeu, porém, a outras perguntas da reportagem, como quanto dinheiro há na conta do fundo ou qual é a equipe responsável por geri-lo enquanto a regulamentação não vem. “Não há uma distribuição transparente dos recursos, e mesmo os repasses declarados para a educação não necessariamente chegaram aonde deveriam”, diz Daniel Cara, professor de economia da educação na Universidade de São Paulo e coordenador honorário da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “O resultado é que não vimos nenhuma diferença, e agora já perdemos uma geração.” É urgente que os problemas apontados pelo TCU sejam resolvidos para garantir que ao menos as próximas gerações sejam beneficiadas pela dádiva do pré-sal.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919