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Mata nativa vira ativo econômico em projeto que recupera nascentes do São Francisco

Projeto de conservação em áreas de nascentes já garante até três safras por ano e atrai investimentos bilionários para recuperar a bacia hidrográfica

Por Ernesto Neves Atualizado em 3 out 2025, 10h59 - Publicado em 26 set 2025, 06h00

A 130 quilômetros de Brasília, na cidade goiana de Cristalina, trabalhadores revolvem a terra para plantar centenas de mudas nativas. As plantas estão embebidas em um hidrogel, que retém água nas raízes e dá às mudas forças para resistir à estiagem que castigou o Centro-Oeste neste setembro. O mutirão acontece na Fazenda Sanga Puitã, do advogado Wilfrido Marques, onde lavouras de soja e milho e a pecuária agora dividem espaço com pés de ipê, buriti e pequi, entre outras plantas emblemáticas do Cerrado. A mata nativa hoje ocupa 10% da propriedade de 100 000 hectares e aponta para um esforço que é fruto de uma nova mentalidade. Convencido de que a região enfrenta um colapso hídrico, Marques iniciou um projeto ecológico que já plantou 100 000 árvores no entorno de nascentes de água. O objetivo é garantir abundância constante do recurso, mesmo durante estiagens. Essa multiplicação das águas traz benefícios que vão muito além da fazenda, contribuindo para recuperar o São Francisco, rio que é símbolo da integração nacional e cuja bacia tem em Cristalina uma área crucial de recarga. A reportagem visitou o local como parte da Expedição VEJA, que está rodando o Brasil para conhecer projetos inovadores de sustentabilidade. “Restaurar a mata nos locais onde há nascentes é como plantar água. Cada árvore ajuda a reter a chuva, faz a água infiltrar na terra e garante que rios e aquíferos continuem vivos”, diz Marques.

arte São Francisco

O proprietário rural integra o Projeto Pró-Águas, iniciativa capitaneada pelo Instituto Espinhaço que busca recompor a vegetação em torno de nascentes que alimentam o Velho Chico. Com o apoio de parceiros privados e governos, o instituto vem multiplicando o replantio em propriedades de Goiás, Minas Gerais e Bahia, entre outros estados. O objetivo é restaurar milhares de hectares em áreas onde há olhos-d’água. Para isso, técnicos mapeiam pontos críticos, recuperam o solo e reintroduzem espécies originais, criando extensos corredores ecológicos. “Desde que começamos o projeto, o volume de água que nasce aqui aumentou em 40%”, afirma Marques. A água extra que escorre de suas terras alimenta dois rios, o Paracatu e o Preto, que acabam por desaguar no São Francisco. O fluxo extra também se converte em oportunidade de negócio, possibilitando a colheita de três safras por ano. Um feito inédito até a chegada do programa.

Ações que promovem a revitalização da bacia hidrográfica do São Francisco por meio de soluções baseadas na própria natureza são fundamentais para aumentar a resiliência do rio, sobretudo diante do agravamento das mudanças climáticas. Com a injeção de recursos de empresas, incluindo a petroleira BP, a distribuidora de energia State Grid e a mineradora Anglo American, além do apoio da Unesco, o Instituto Espinhaço inicia agora uma nova e ambiciosa fase do projeto, o Plantando Águas Para o São Francisco, cuja meta é investir 1 bilhão de reais no plantio de 15 milhões de árvores. Elas vão compor extensos corredores verdes, beneficiando, além do próprio rio, quatro de suas sub-bacias, Jequitaí, das Velhas, Pará e Paraopeba. Outro alvo de intervenções é o Rio Urucuia, em Minas Gerais, responsável por cerca de 80% da vazão do São Francisco nos períodos de estiagem. O projeto será financiado com 500 milhões de reais arrecadados em multas ambientais aplicadas à Petrobras. “Desde a pandemia, o setor privado passou a investir na segurança hídrica, reconhecendo a água como elemento vital para a conservação do meio ambiente”, afirma Sérgio Nésio, diretor do Instituto Espinhaço.

O fazendeiro Wilfrido Marques em área de reflorestamento: 100 000 novas árvores
O fazendeiro Wilfrido Marques em área de reflorestamento: 100 000 novas árvores (Claudio Gatti/.)
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As intervenções servem para enfrentar uma tendência alarmante. De acordo com o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites, da Universidade Federal de Alagoas, a vazão do São Francisco diminuiu 60% nas últimas três décadas. Desde 1991, ele perdeu em média 950 metros cúbicos de água por segundo. O declínio tem contribuído para o assoreamento do leito do rio, com a formação de bancos de areia que dificultam a navegação. Em áreas como Propriá (SE) e Penedo (AL), por exemplo, se observam graves impactos na economia e na mobilidade das comunidades ribeirinhas. Também é alarmante a situação na foz do rio, na divisa entre Alagoas e Sergipe. Ali, a redução do fluxo permite que o mar avance sobre a água doce, um fenômeno conhecido como salinização. Esse processo destrói a fauna e a flora local e inviabiliza o consumo de água pelas populações do entorno. A transposição do rio para abastecer o semiárido do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba acabou piorando o cenário. “A retração tem múltiplas causas, mas todas convergem para o desmatamento do Cerrado”, afirma Maciel Oliveira, diretor do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, órgão responsável pela gestão das águas do rio.

Sérgio Nésio, do Instituto Espinhaço: “A água é elemento vital para a conservação”
Sérgio Nésio, do Instituto Espinhaço: “A água é elemento vital para a conservação” (Claudio Gatti/.)

A crise de vazão e os impactos sentidos ao longo do curso do São Francisco estão diretamente ligados à mudança no uso do solo no Cerrado. Desde 1985, o Brasil destruiu 38 milhões de hectares de mata nativa no Centro-Oeste, segundo a plataforma de dados MapBiomas. Hoje, cerca de metade de sua área original está ocupada por lavouras e pastagens. Nas regiões de recarga hídrica, a perda de cobertura vegetal chega a um terço. Sem árvores para proteger o solo, a chuva se infiltra com dificuldade, os aquíferos recarregam lentamente e os rios sofrem quedas drásticas de vazão, sobretudo durante a estiagem.

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O resultado é um efeito dominó: as nascentes do Cerrado, berço de oito das doze grandes bacias hidrográficas do país, estão secando. A supressão maciça de árvores ainda agrava o ciclo hidrológico, intensificando o período de seca. Em 2024, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal registraram 170 dias sem chuva, um recorde. “Diante da gravidade da situação, não é viável recuperar tudo que gostaríamos. Por isso, contamos com mapeamentos de centros de excelência, como a Universidade de Viçosa, para definir as áreas prioritárias”, diz Valdir Dias, biólogo e coordenador de projetos de restauração.

Valdir Dias com mudas nativas para plantio em áreas prioritárias: a situação do rio é preocupante
Valdir Dias com mudas nativas para plantio em áreas prioritárias: a situação do rio é preocupante (Claudio Gatti/.)

Com nascente na Serra da Canastra, a 1 200 metros de altitude, em Minas Gerais, o São Francisco percorre 2 830 quilômetros, atravessando Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe até desaguar no Oceano Atlântico. Sua bacia cobre mais de 600 000 quilômetros quadrados, cerca de 8% do território brasileiro, conectando Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. O São Francisco também garante o consumo de água de 15 milhões de pessoas e move as turbinas de oito usinas hidrelétricas. Cada ação de recuperação de vegetação nativa contribui para a continuidade desse rio, que provê água potável, irrigação e energia — uma prova viva de que desenvolvimento e conservação podem e devem caminhar juntos.

Publicado em VEJA, setembro de 2025, edição VEJA Negócios nº 18

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