Guedes acerta em negar dados da fome? Disputa eleitoral polariza debate
Há discordâncias quanto ao total de famintos no Brasil, se atingiu 33 milhões de pessoas no fim da pandemia e se número pode ter recuado nos últimos meses
Embora a fome não seja visível para a classe média e alta do país, grupo no qual os governantes estão incluídos, ela é a realidade para muitos brasileiros. Atualmente, cerca de 33 milhões de brasileiros passam fome, segundo relatório da Rede Penssan. O dado, no entanto, é contestado pelo atual governo. O presidente Jair Bolsonaro disse que “não existe fome pra valer” no Brasil e o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma que os números são falsos.
Os números que fazem parte do relatório da Rede Penssan foram coletados em 12.745 domicílios de 577 municípios de todo o Brasil, entre novembro de 2021 e abril de 2022. O ministro refuta os dados apontando para as medidas tomadas pelo governo durante a pandemia e o aumento do Auxílio Brasil, no valor atual de 600 reais, desde agosto — ou seja, depois do estudo ser feito. Apesar da inflação acumulada nos últimos dois anos, o ministro afirma que o poder de compra foi preservado com o programa de transferência de renda. “A narrativa política é de barulho: 33 milhões de pessoas passando fome. É mentira, é falso, não são esses os números. Nós estamos transferindo para os mais pobres três vezes mais do que recebiam antes”, disse.
O valor atual corresponde a 1,5% do PIB, contra os 0,4% de antes do governo Bolsonaro. O ministro, no entanto, não apontou quais seriam, em seus cálculos, os números considerados corretos. Procurada pela reportagem de VEJA, a Rede Penssan não quis comentar sobre o levantamento e as contestações do ministro.
A pesquisa, no entanto, não é a única a revelar o aumento da insegurança alimentar e da fome no país. Uma pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), com dados coletados entre agosto e novembro de 2021, revela que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, atingindo novo recorde da série iniciada em 2006. “Em 2019, período pré-pandemia, 11% da população, ou cerca de 23 milhões de pessoas, estavam abaixo da linha de pobreza. Em outubro de 2021, esse percentual era de 13% da população, cerca de 27,6 milhões de pessoas. Os números incluem, portanto, mais 4,6 milhões de novos pobres ”, aponta o relatório.
Em 2014, o Brasil saiu do chamado Mapa da fome da ONU e ocupava a 36ª posição no ranking de insegurança alimentar com 145 países, mas agora caiu para 80ª, retornando ao rol dos países com maior grau de insegurança alimentar. Neste ano, o Brasil voltou para o Mapa da Fome, devido ao aumento da parcela de brasileiros que afirmam não ter certeza de quando farão a próxima refeição. O número dos que reportaram dificuldade para se alimentar entre 2019 e 2021 foi de 61 milhões, bem acima dos 4 milhões entre 2014 e 2016. Já os dados relativos a 2022 só serão conhecidos no futuro.
Para a economista Vivian Almeida, professora do Ibmec, todas as recentes pesquisas apontam para aumento da insegurança alimentar no país, refletindo o empobrecimento da população, que foi bastante impactada pela pandemia com perda de emprego e renda. Apesar dos auxílios do governo e da recuperação no mercado de trabalho, os salários não acompanham a inflação. “Uma renda que não acompanha o contexto inflacionário faz com que valor do auxílio seja insuficiente para atender às demandas do grupo familiar”, diz.
Embora os dados de inflação estejam em trajetória de queda, eles acontecem em grande parte devido às medidas tributárias e aos reajustes da Petrobras amparados pela queda do preço do petróleo no mercado internacional. Ou seja, ficaram muito concentrados em combustíveis, o que pesa mais para quem possui veículos automotivos, e em energia elétrica, conta que já era subsidiada para os mais pobres.
Todos os demais itens que compõe o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) continuam bastante pressionados, em especial, o grupo de alimentos e bebidas, que acumula alta de 13,43% no acumulado de doze meses até agosto. Dessa forma, a queda da inflação impactou em grande parte a população de classe média/alta, grupo que tem carro e consome mais combustíveis, sendo menos sentida pela população de baixa renda, que ainda encontra dificuldades de colocar os alimentos na mesa.
O economista Pedro Fernando Nery considera o número de 33 milhões exagerado, mas não descarta que a fome tenha aumentado. “O ministro tem alguma razão. O que chama atenção nos dados dos 33 milhões é o crescimento expressivo do número de pessoas com fome, mesmo depois do pior da pandemia. Mas falta uma explicação de por que a fome teria aumentado. É só inflação? Há muita fila para o Auxílio Brasil?”, indaga. Ele explica que, em tese, o número de pessoas em extrema pobreza (percentual de pessoas abaixo de uma determinada linha de renda) provavelmente caiu entre 2021 e 2022 com o fim da pandemia e os pagamentos dos auxílios, mas mesmo assim é possível que esses indivíduos que restaram na faixa mais pobre tenham ficado em situação de maior vulnerabilidade, inclusive, passando fome (se a distância para essa linha aumentar para os extremamente pobres que sobraram). “Se isso acontecesse, teríamos menos pessoas vivendo na extrema pobreza, mas maior privação nas pessoas que estão na extrema pobreza”, diz. “É possível imaginar uma família que não conseguiu receber o Auxílio e vê a inflação aumentar. Poderia ser parte da explicação, mas, como o número de 33 milhões é muito alto, não pode ser toda a explicação.”
O não recebimento do auxílio denotaria outro problema: uma disfuncionalidade nos programas de transferência de renda, que estariam mal ajustados, não atingindo algumas pessoas ou sendo insuficiente para famílias com mais integrantes, por exemplo. Muitas vezes o auxílio é concedido de forma desigual, prejudicando a distribuição dos recursos. Segundo Almeida, os programas de transferência de renda são políticas focalizadas e, por isso, é preciso conhecer o perfil desses beneficiários. Nos últimos meses, com as recentes mudanças na atualização dos cadastros – onde estão as informações desse grupo – notou-se o aumento de pessoas morando sozinha. A conclusão dos especialistas é que pessoas de um mesmo grupo familiar estão preenchendo o cadastro de forma individualizada para receber o beneficio duplicado, deixando os recursos mais escasso para outros ou até mesmo, deixando muitos de fora do acesso ao benefício.
Apesar de tudo isso, o problema da fome continua sendo negado pelo atual presidente. Recentemente, Jair Bolsonaro afirmou que “não tem fome no Brasil” e que “não se vê gente pedindo pão na porta de padarias”. Os dados de fome e pobreza viraram alvo da disputa eleitoral. De um lado, Bolsonaro nega a existência do problema, enquanto o candidato Luiz Inácio Lula da Silva se mune desses dados para buscar ampliar a vantagem na disputa contra seu principal oponente.
No centro do debate político de cunho eleitoreiro, a questão acaba sendo inflada ou refutada. “O problema não é a fala do ministro Paulo Guedes, mas a fala infame do presidente. Entre os ’33 milhões de pessoas passando fome’ da oposição e o ‘ninguém passando fome’ do governo, existe a realidade. O debate público está perdido entre o negacionismo do governo e o sensacionalismo dos 33 milhões”, diz Nery.