Gripe aviária impõe novos desafios ao Brasil no combate a crises sanitárias
Os Estados Unidos mostram que vacilar no controle é fácil. Trata-se de um erro que o Brasil não pode se dar ao luxo de cometer

Desde que foi identificado pela primeira vez na China, em 1996, o H5N1, vírus causador da gripe aviária, deixou governos e empresas em alerta. Ele é extremamente transmissível e, se não for contido, pode dizimar criações inteiras de frango, a segunda proteína animal mais consumida no mundo. O caso mais emblemático de danos decorrentes da doença é o dos Estados Unidos, onde a disseminação dela em granjas comerciais já levou ao abate e ao descarte de mais de 170 milhões de aves desde 2022. A matança fez o preço dos ovos no país subir 80% nos últimos doze meses.
Até o último dia 15, o único grande produtor global que nunca havia tido um caso de gripe aviária em suas granjas era o Brasil. Não mais. “Não era uma questão de se ia acontecer, mas de quando ia acontecer”, diz Carlos Goulart, secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura. Agora, o governo Lula, o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, e o setor privado trabalham para não repetir o pesadelo americano. Até o momento, o país dá sinais de estar indo na direção correta.
O Brasil é o terceiro maior criador de frangos do mundo, atrás de Estados Unidos e China, e ocupa o primeiro lugar em exportações, despachando 5,3 milhões de toneladas de carne por ano. A venda externa sofreu um baque imediato desde que um produtor de Montenegro, no Rio Grande do Sul, descobriu que tinha aves com a gripe. Até a última quinta, 22, dezenove países, além da União Europeia, haviam suspendido todas as compras de carne de frango provenientes do Brasil. Dois dos cinco maiores clientes, China e México, compõem a lista. Outros onze países impuseram um embargo regional contra o Rio Grande do Sul ou apenas a Montenegro. “Deixar de comprar frango do Paraná porque teve um caso no Rio Grande do Sul é ilógico”, afirma Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que critica protocolos sanitários que bloqueiam as exportações de todo o país. Afinal, diz ele, de forma acertada, o Brasil tem a dimensão de um continente.

O banco BTG estima que os embargos podem ter um impacto negativo de aproximadamente 300 milhões de dólares (o equivalente a 1,7 bilhão de reais) ao mês para as exportações brasileiras. “As incertezas a respeito da duração e da extensão dos entraves comerciais, e de quais países serão mais rígidos, tornam esse tipo de estimativa dos prejuízos muito imprecisa”, pondera Santin. Independentemente disso, dados preliminares divulgados em relatórios como o do BTG evidenciam o severo impacto econômico do vírus.
Antes mesmo da atual crise, o governo federal já trabalhava nos últimos anos para negociar a flexibilização de protocolos sanitários. Uma das conquistas mais recentes do Ministério da Agricultura foi a atualização das normas do Japão, o terceiro maior comprador de frango brasileiro. Fornecedores de municípios onde não há foco de H5N1 podem seguir fazendo negócio com os japoneses. “Estamos enviando pedidos para todos os países para que a restrição à compra fique limitada apenas ao raio de 10 quilômetros de onde houve o caso”, afirma Luis Rua, secretário de Comércio e Relações Internacionais do ministério. A avicultura brasileira tem a seu favor o fato de que, dos 160 países para os quais exporta, ao menos 120 não têm protocolos de restrição em nível nacional em casos de gripe aviária localizada.
Apesar de ser altamente letal e transmissível entre aves, a gripe aviária representa um risco baixo à saúde dos seres humanos. Comer carne contaminada não transmite o vírus para as pessoas, mas há risco no manuseio de animais com a doença. O Brasil nunca registrou um caso da doença em humanos. Um funcionário da granja de Montenegro chegou a apresentar sintomas, mas a suspeita de gripe aviária foi descartada após exames. O principal perigo do H5N1 é o de contaminação de outras aves, prejudicando a produção de alimentos. Isso pode levar à escassez e ao aumento nos preços.
A restrição às exportações da avicultura brasileira, que costuma mandar 35% da sua produção para o exterior, em tese pode levar a uma redução no preço da carne de frango no Brasil, dado que haveria um redirecionamento do produto para o mercado interno — mas o benefício é ilusório. O efeito geral da gripe aviária, principalmente se a crise sair do controle, seria o exato oposto. “Em países onde o vírus se espalha, os preços disparam”, diz Jeferson Vidor, sócio da granja gaúcha Bom Frango. O produtor teve de aumentar os abates de animais na sua granja em meio à descoberta do vírus no estado, numa demonstração de como a questão sanitária já afetou a oferta de frango.
Felizmente, após o susto inicial, tudo indica que o problema não atingirá uma escala muito maior. O foco do H5N1 em Montenegro foi completamente isolado, segundo o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, de modo que não é mais possível o espalhamento do vírus a partir da região. A ABPA considera que, se novos casos forem encontrados pelo país, será uma consequência da intensificação dos testes. Até a última quinta, 22, o governo federal investigava oito suspeitas de gripe aviária no território nacional (três no Rio Grande do Sul e duas em Santa Catarina). Pará, Tocantins e Ceará contabilizavam uma investigação cada um. A maioria envolve aves silvestres ou domésticas. Apenas duas das suspeitas de infecção são de aves de criação comercial, o tipo que, se doente, motiva embargos às exportações para outros países.

A gripe aviária em animais silvestres é uma realidade no Brasil desde maio de 2023. Cerca de 4 000 investigações foram realizadas nos últimos três anos e 164 casos dessa categoria foram identificados. O H5N1 cruza fronteiras internacionais por meio da migração de espécies de aves. Por isso, impedir por completo a sua presença na fauna brasileira nunca foi uma meta atingível. Os ambientes controlados das granjas são o foco principal da fiscalização.
Zelar pelo espaço sanitário de um país depende da cooperação entre governos federal, estadual e municipal, em conjunto com as empresas. Essa estratégia até o momento se mostrou bem-sucedida, ao retardar a chegada do primeiro caso de gripe e investigar suspeitas de novos focos. “Mesmo se o caso do Rio Grande do Sul for o único, a apreensão segue, porque sempre há o risco de novas infecções”, diz José Carlos de Lima Júnior, sócio da consultoria Markestrat, especializada em agronegócio.
Apesar de o Brasil agora não possuir mais o status de país livre de influenza aviária, pelo menos tem a chance de mostrar aos parceiros internacionais que é capaz de gerenciar esse tipo de desafio sanitário. “Alguns países que ainda não quiseram flexibilizar seus protocolos sanitários conosco preferiram esperar a confirmação de um caso no Brasil para ver como lidamos com a situação”, afirma Luis Rua, secretário de Comércio do Ministério da Agricultura. Entre as medidas das quais os produtores dispõem para evitar o surgimento de novos focos do vírus estão a rastreabilidade da produção, o treinamento de pessoal e a equipagem adequada das granjas, além de deixar as aves comerciais longe dos animais silvestres. Os Estados Unidos mostram que vacilar no controle da gripe aviária é fácil. Trata-se de um erro que o Brasil não pode se dar ao luxo de cometer.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945