Governo Lula articula agenda de retrocessos para relações de trabalho
Contribuição sindical obrigatória e criação de vínculos trabalhistas entre empresas e profissionais autônomos estão entre as propostas
O escorpião pede ao sapo que o ajude a cruzar o rio. O sapo resiste, pois teme ser picado. Para convencê-lo, o escorpião diz que não faria isso, sob o risco de ambos afundarem. O argumento é suficiente para o sapo, mas o escorpião, que não resiste à própria natureza, acaba por ferroá-lo — e ambos morrem. A antiga fábula indiana pode servir para entender coisas que ocorrem no Brasil. Desde o início do ano, integrantes do governo Lula têm defendido a revisão de pontos importantes da reforma trabalhista, como o fim do imposto sindical — defendem uma volta disfarçada com algo semelhante ao imposto. O assunto parecia superado, mas o PT, cuja raiz vem da atividade sindical, não consegue negar a própria natureza, tal qual o animal peçonhento dos indianos. A agenda do atraso não se encerra nessa questão. Temas afeitos ao século passado, como o estabelecimento de vínculos trabalhistas entre profissionais autônomos e empresas, também voltaram a ser cogitados em Brasília.
A primeira frente que o governo abriu para a volta do tema foi no Supremo Tribunal Federal, pelo voto do ministro Gilmar Mendes. Sensibilizado com o enfraquecimento do sindicalismo no Brasil (veja o quadro), Mendes alterou o entendimento anterior e, assim, formou maioria para o retorno da contribuição assistencial obrigatória, que havia sido eliminada no governo Michel Temer. Ao contrário do imposto sindical, ela é estabelecida em assembleia de cada categoria, e não há um valor fixo. A votação no STF será retomada no início de setembro.
A outra frente de recomposição da atividade sindical deve ser aberta no Congresso, apesar da dificuldade que a proposta encontrará por lá. Um projeto de lei em gestação no governo prevê um teto para a nova taxa de até 1% do rendimento anual do trabalhador, a ser descontada na folha de pagamento e cobrada quando há negociação salarial intermediada pelo sindicato. Como essas negociações ocorrem sempre, a justificativa do governo ao dizer que isso não significa a volta do imposto é apenas retórica. “É um baita retrocesso, ruim para a população e uma sinalização péssima para a economia”, diz o economista Alexandre Schwartsman.
As investidas do PT não surpreendem. Durante a campanha, o presidente Lula falou em buscar novas formas de financiar a atividade sindical. Em entrevista recente ao repórter Diego Gimenes, no programa VEJA Mercado, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, confirmou que a pasta planeja o retorno da contribuição e que ela “terá um teto”. Marinho não é o único em cruzada pela revisão da reforma trabalhista. O ministro da Previdência, Carlos Lupi, já a criticou publicamente ao dizer que prejudicou a vida do brasileiro. “Retroceder para reimplantar essa obrigatoriedade só interessa aos pelegos e aos sindicatos de fachada”, diz o senador Rogério Marinho (PL-RN), que foi relator da reforma na Câmara. Além da volta de uma espécie de fonte de custeio da atividade sindical, o governo também bate o pé pela manutenção da chamada “unicidade”, que proíbe a criação de mais de um sindicato representativo de uma categoria na mesma região. A proibição, que na prática veta qualquer tipo de concorrência, mesmo se esse for o desejo dos empregados, vai contra o que preconiza a Organização Internacional do Trabalho. “Rever isso seria importante, porque é um mecanismo atrasado que não representa o interesse do trabalhador”, reconhece Marinho.
A reforma trabalhista promulgada em 2017 foi bem-vinda por atualizar as relações entre empregados e empresas em um mundo marcado por novas — e incessantes — revoluções tecnológicas. Essas mudanças permitiram, por exemplo, a labuta diária realizada mesmo longe do escritório, o chamado home office. Também eliminaram barreiras de horários, entre outras “disrupções”, para usar uma palavra destes tempos. Países que modernizaram suas regras há mais tempo vêm colhendo resultados.
No final dos anos 1990, a Alemanha vivia uma de suas piores crises econômicas. A resposta veio em 2002, com uma ampla reforma de sua economia, chamada de Plano Hartz, que incluiu mudanças nas regras trabalhistas, como a simplificação da contratação de trabalhadores temporários ou terceirizados, desde que assegurando a mesma remuneração e direitos. Hoje em dia, a Alemanha tem uma economia pulsante e uma das menores taxas de desemprego do mundo. No Brasil, a reforma provocou efeitos imediatos, como a redução de litígios entre empresas e trabalhadores — o número de processos caiu de 2,6 milhões em 2017 para 1,1 milhão no ano passado.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, também defende o estabelecimento de vínculos trabalhistas para motoristas de aplicativos como Uber e 99 e entregadores de encomendas. Detalhe: nem sequer os profissionais que exercem essas atividades desejam ter o seu trabalho regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Em maio, uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha mostrou que 75% dos trabalhadores de aplicativos, inclusos aí motoristas de Uber e motoboys, preferem manter a autonomia. Na sociedade atual, manter o olhar no retrovisor pode frear o acompanhamento dos novos tempos. Sob diversos aspectos, a recriação de taxas sindicais e a imposição de vínculos trabalhistas são ideias deslocadas no tempo. O governo deveria entender que o mundo mudou e que trazer de volta regras do passado é um retrocesso capaz de prejudicar os próprios trabalhadores — e atrasar a economia do país.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857