Governo enfrenta obstáculos para aprovar reforma tributária ainda em 2024
Entregue a proposta de regulação, Haddad tenta evitar que se repita a rodada de remendos que o texto anterior sofreu na primeira tramitação no Congresso
Durante a implementação do Plano Real, em 1994, o ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, foi alertado, pelo candidato a presidente Fernando Henrique Cardoso, sobre o risco de o Congresso desfigurar a proposta. “Vão querer pendurar uma porção de coisas que não têm nada a ver”, disse FHC à época. O relato acima foi feito a VEJA pelo próprio Ricupero e ilustra como é complexo emplacar grandes mudanças econômicas sem o intrometimento implacável — para o bem ou para o mal — do Congresso. Trinta anos depois, o Parlamento se volta à reforma tributária, cuja regulamentação também está sujeita à apreciação de deputados e senadores. Não será tarefa fácil dar andamento ao projeto, especialmente diante do apertado calendário do Legislativo em 2024 — haverá eleições municipais em outubro — e do intrincado relacionamento entre o governo e o Congresso.
Na noite da quarta-feira 24, o presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu das mãos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o documento de 354 páginas, 499 artigos e 24 anexos que compõem a proposta do governo para a regulamentação da tão aguardada reforma tributária. É esse calhamaço que seguirá sob a análise parlamentar nos próximos meses. Com ele, vão junto dois grandes desafios do governo: aprovar as regras ainda em 2024 e evitar que se repita a rodada de remendos que o texto anterior sofreu na primeira tramitação no Congresso. “A força dos grupos de interesse poderá ampliar os privilégios e exceções e tirar ainda mais o brilho da reforma”, diz o economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, sócio da Tendências Consultoria. “Quanto mais exceções, maior o imposto que todo o resto terá que pagar.”
A promessa de Lira é aprovar o pacote na Câmara antes do recesso parlamentar, em julho, para que no retorno, em agosto, ele já possa ser apreciado pelo Senado. Trata-se de um calendário bastante desafiador, dado o tamanho do projeto em proporção ao pouco tempo disponível. É por isso que o presidente Lula tem defendido a ideia de que, tanto Lira quanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, reconduzam para a relatoria dessa nova etapa da reforma o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e o senador Eduardo Braga (MDB-AM), responsáveis por coordená-la nas votações do ano passado. “O cara já está familiarizado, você ganha tempo”, disse Lula para jornalistas no início da semana.
O principal objetivo da reforma tributária, aprovada e promulgada em dezembro, é simplificar o emaranhado de impostos do consumo. O novo sistema pretende trocar os milhares de legislações e alíquotas atuais por um futuro imposto único, mais transparente e mais simples. Será o chamado IVA, ou Imposto sobre Valor Agregado, e foi inspirado nos melhores exemplos do mundo. Mas o Brasil é o Brasil: a primeira versão aprovada pelos parlamentares ganhou uma lista grande de categorias com o direito de pagar menos ou nenhum imposto. Elas vão de remédios e alimentos, passando por profissionais liberais, a times de futebol.
Pelos cálculos de Bernard Appy, secretário especial da Fazenda e um dos pais da atual reforma tributária, a profusão de exceções já elevaria o IVA padrão para algo entre 25,7% e 27,3%, o que o colocaria entre os mais altos do mundo. O papel da regulamentação é, justamente, definir os produtos e serviços que terão tratamento especial — o perigo está aí. Os parlamentares estão expostos a lobbies de diferentes setores, e certamente muitos deles defenderão seus interesses com afinco. Como se não bastasse, a regulação chega ao Congresso em um momento tumultuado da relação entre o governo Lula e o Legislativo. “A tradução disso é uma reforma que pode demorar mais para passar e que, possivelmente, acabará mais distante do ideal desejado pela equipe econômica”, diz o cientista político Rafael Cortez.
Há muitos obstáculos no horizonte. Ameaças de pautas-bomba, com as quais os parlamentares poderiam implodir o Orçamento, ainda pairam no ar. A situação também é mais delicada do que no ano passado, quando a reforma tributária foi apreciada pela primeira vez por deputados. “A impressão é de que agora a relação está mais descontrolada”, diz o ex-ministro Ricupero. Sobrou até para Haddad, que levou um puxão de orelha público de Lula por, segundo o presidente, ler livros demais e conversar com o Congresso de menos. “O ministro tem que fazer sua parte, mas o entendimento maior com Lira precisa vir do próprio Lula”, afirma Ricupero.
Conta a favor o fato de o presidente da Câmara ser um dos principais interessados na aprovação. O mandato do alagoano à frente da casa legislativa termina em menos de um ano e ele quer incluir a matéria no currículo. “Lira será o presidente da Câmara que vai aprovar a reforma depois de trinta anos”, afirma o deputado Baleia Rossi (MDB-SP). “Concluir a proposta é uma sinalização importante que o país dará aos agentes econômicos nacionais e internacionais”, diz o deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR), um dos idealizadores da reforma. Há um entendimento entre parlamentares de que Lira poderá blindar a pauta de seus atritos com o Executivo. “Mas a coordenação política do governo está bastante instável”, diz Murillo de Aragão, fundador da casa de análises políticas Arko Advice. “Se esse diálogo com o Congresso melhorar, é possível, sim, termos uma boa reforma aprovada até o fim do ano.”
As bases do sistema tributário brasileiro foram estabelecidas nos anos 1960 e, ao menos desde a redemocratização, especialistas discutem como desatar o nó em que ele se transformou. “São vários anos de debate, então não podemos dizer que seis meses vão definir ou não o sucesso da proposta”, afirmou a VEJA o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. “É uma questão de tempo para que as reformas faltantes, a tributária e a administrativa, sejam consumadas.” Tudo indica, porém, que o caminho será longo e tortuoso. Cabe ao Parlamento dar andamento célere às novas regras tributárias, fundamentais para o país virar uma página importante de sua história.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890