Fim da estagnação está próximo: os sinais da recuperação econômica
A retomada do crescimento surge no momento em que o governo apresenta propostas para remover entraves históricos ao desenvolvimento
Houve choro, houve ranger de dentes, como no purgatório descrito por Dante Alighieri, mas finalmente a luz começa a se infiltrar entre as nuvens pesadas que encobriram o horizonte. Depois de passar pela pior recessão desde a crise financeira de 1929, a economia brasileira registra sinais relevantes de recuperação. Associados à correção das iniciativas arquitetadas no Ministério da Economia, tais indicadores apontam para um novo ciclo de crescimento prestes a decolar em um futuro próximo — desta vez, sustentado por mudanças estruturais consistentes e sem risco de se tornar um voo de galinha, com exagerado bater de asas e muito barulho, e que rapidamente se estatela no chão. Os números que atestam o fim da estagnação podem ser detectados na produção de carros, caminhões e tratores, nas altas recorde e em sequência da Bolsa de Valores de São Paulo, no aumento das vendas de bens de consumo e na geração de empregos. Paralelamente a esse princípio de recuperação, o governo partiu para uma demonstração explícita em sua disposição de atacar gargalos estruturais que têm estrangulado por décadas a expansão da produção de riqueza no país. A entrega do primeiro pacote de mudanças legislativas sugeridas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na última terça-feira, 5, animou empresários e investidores indiscriminadamente. “O governo tem demonstrado muita coragem de enfrentar questões que historicamente foram ignoradas”, diz o economista Raul Velloso. “É um ajuste de contas que pode ser doloroso para o cidadão, mas necessário para avançarmos.”
A grande novidade no conjunto de medidas apresentado pelo governo é a liberação do Estado da obrigação de induzir o crescimento. A previsão dos economistas é que o produto interno bruto avance apenas 0,92% neste ano. É pouco, e está aquém das necessidades da população brasileira, que carece até de comida — 13,5 milhões de pessoas vivem hoje na extrema pobreza, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por outro lado, esse parco crescimento está relacionado quase que exclusivamente à iniciativa privada, que começa a aprender a se virar sem os recursos do BNDES ou dos grandes contratos públicos. Já não existem Programas de Aceleração do Crescimento (PACs) e mal há dinheiro no Orçamento para investimentos. “A gente sabe para onde nos levou a política de Estado indutor, e que isso já fracassou”, afirma o economista Alexandre Schwartsman. “Não existe mais o caminho da expansão fiscal, graças ao próprio descontrole de gastos do passado. Isso forçará um aprendizado”, conclui. A lógica de Schwartsman pode ser traduzida no ditado popular “Quem não aprende no amor aprende na dor”. Essa dor trouxe ao Brasil a menor taxa básica de juros da história do Plano Real — 5% ao ano. Quando descontada a inflação, a taxa real de juros deverá encerrar o ano em 1,16% — índice tão civilizado que era impossível prevê-lo pouco mais de três anos atrás.
A situação está longe de ser confortável, mas a melhora é perceptível. Um exemplo é a queda no desemprego. Nos últimos doze meses, foram gerados 34% mais postos de trabalho com carteira assinada do que nos doze meses anteriores. Ainda assim, o desemprego está em 11,8%, o que no mundo real significa um contingente de 12,6 milhões de homens e mulheres sem trabalho ou salário. Mesmo quem consegue emprego ocupa vagas que são, em sua maioria, de baixa remuneração — a informalidade continua sendo a única saída de muitos trabalhadores. Os setores de serviços e comércio, como o varejista, que sofreram quedas abruptas nos últimos anos, estão encontrando na tecnologia uma saída para aumentar as vendas. Segundo a consultoria inglesa Euromonitor, o smartphone será o vetor de crescimento para esses segmentos em 2020 — os maiores responsáveis pelo aumento das ocupações são empresas da era do celular inteligente, como Uber e iFood. O turismo também tem crescido, com maior oferta de voos por empresas aéreas low-cost internacionais e diminuição das restrições de visto para estrangeiros. Em 2019, a procura por destinos como a catarinense Camboriú aumentou 30% no primeiro semestre. A construção civil, outro setor que produz forte impacto na empregabilidade, apresentou alta de 108% das vendas de imóveis em São Paulo no mês de setembro, segundo dados do Sindicato da Habitação (Secovi). A base de comparação é baixa, sem dúvida, dada a debacle do setor nos últimos anos, mas o crescimento não deixa de ser muito bem-vindo.
Ainda que a passos lentos e titubeantes, a retomada é indiscutível. Refutar os dados e os indicadores significa má-fé intelectual, principalmente quando se faz isso por motivação ideológica e sob o argumento de que o caminho para a prosperidade é dar continuidade às políticas desastrosas do passado recente, de forte cunho populista. Desde 1985, ano da redemocratização, o brasileiro já foi do paraíso ao inferno por causa de uma sucessão de experimentos desse calibre. No governo de José Sarney (1985-1990), animou-se com o congelamento de preços do Plano Cruzado e recebeu em troca a escassez de carne e de combustível. Na gestão de Fernando Collor (1990-1992), traumatizou-se com o confisco do Plano Collor I, numa bizarra tentativa de alcançar a estabilidade a partir do bloqueio das economias do pequeno poupador. Nos governos Lula e Dilma, foi apresentado à Nova Matriz Econômica, que levou o Brasil ao descalabro fiscal, a uma recessão que durou dois anos e à corrosão de 10% na renda per capita em um período de cinco anos. As novas bases, batizadas por VEJA de “Plano Guedes”, têm sido fundeadas na remoção de barreiras impostas pelo Estado para que a livre-iniciativa se encarregue da criação de valor.
Em um gesto altamente simbólico, o presidente Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e todo o entourage governista atravessaram a pé a Praça dos Três Poderes, entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional, para entregar as três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O ato foi um desafio à classe política. Nas brochuras carregadas pelo presidente e pelo ministro estão três das seis medidas que, se aprovadas, prometem impulsionar o crescimento e ainda evitar que a população volte a experimentar o amargo gosto deixado pelo fracasso das políticas anteriores.
O primeiro texto é o da PEC do Pacto Federativo, que melhora a distribuição de recursos entre a União, os estados e os municípios, além de redefinir as responsabilidades de cada um. A proposta também unifica em uma única rubrica no Orçamento os pisos de gastos com saúde e educação — faz sentido, uma vez que estados e municípios têm composição demográfica diferente e apresentam necessidades distintas. O segundo projeto é a chamada PEC Emergencial, que define gatilhos nas contas públicas das três esferas de governo para que mecanismos de contenção de gastos sejam deflagrados. Em bom português: quando o governo fica sem dinheiro, ele ganha permissão para cortar despesas que hoje são obrigatórias. Um dos ajustes “emergenciais” é a redução da jornada de trabalho dos servidores, com corte proporcional nos salários.
O último projeto é o da PEC dos Fundos Públicos, que revê 281 fundos infraconstitucionais para descongelar 222 bilhões de reais que estão travados, sem destinação. É o chamado “dinheiro carimbado”: recursos que, por lei, têm um destino predefinido (ensino profissional marítimo, por exemplo), mas que, por falta de bons projetos ou restrições legais, não são utilizados. Esse valor inicial será empregado para renegociar a dívida do governo com seus credores e, a partir de 2021, 30 bilhões por ano serão destinados para investimentos. O governo é ousado ao estabelecer como meta a aprovação de pelo menos uma dessas medidas até maio de 2020. Trata-se de uma agenda arriscada, uma vez que o calendário das eleições municipais de 2020 vai espremer a atividade legislativa a ínfimos seis meses. Foi o tamanho do desafio que levou tantos palacianos ao Congresso, como maneira de pressionar os parlamentares e também mostrar confiança em Alcolumbre para conduzir as propostas e votá-las no prazo.
As propostas iniciais devem ser complementadas por outras três nos próximos dias. Dessa vez, serão entregues as PECs das reformas administrativa e tributária e do projeto de lei que acelera as vendas de ativos do governo — chamado de fast track das privatizações. “O ponto alto dessas mudanças é que elas forçam um controle da gestão nos três níveis de governo”, afirma Marcos Mendes, pesquisador do Insper e autor do livro Por que o Brasil Cresce Pouco. “O risco, por outro lado, é que, na busca por protagonismo, o Congresso desfigure as propostas em políticas assistencialistas. Como o governo tem má articulação política, as portas estão abertas para isso”, conclui.
A preocupação tem motivo. O partido do presidente, o PSL, está rachado. Seus filhos acabam por atrapalhar a condução dos trabalhos. Em meio à votação da reforma da Previdência, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), na ânsia de se tornar embaixador nos Estados Unidos, forçou o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) a organizar verdadeiras missões de parlamentares ao gabinete de Davi Alcolumbre. Sem falar nos ataques do vereador carioca Carlos Bolsonaro (PSC) a integrantes do governo e a parlamentares do PSL ou nas esquivas do senador Flávio Bolsonaro (PSLRJ) às perguntas sobre nomeações de familiares enquanto deputado estadual no Rio de Janeiro. Sem uma articulação azeitada, dificilmente o Ministério da Economia alcançará a aprovação das propostas da forma que almeja. Poderá virar pó o sonho de Guedes — transcrito em um documento do ministério e enviado a grandes bancos duas semanas atrás — de ver o PIB crescer ao ritmo de 4% ao ano já em 2021. Espera-se que as confusões políticas não tenham impactos desastrosos e imobilizem o Executivo, como ocorreu no governo anterior durante o célebre Joesley Day (quando Rodrigo Janot, então procurador-geral da República, implicou Michel Temer em um escândalo articulado pelo empresário Joesley Batista que derrubou a bolsa e desmobilizou o esforço pela reforma da Previdência) ou a greve dos caminhoneiros, que corroeu 1,2% do crescimento do PIB em 2018 (e foi apoiada, à época, pelo então deputado Jair Bolsonaro).
Se na seara política o prospecto é nebuloso, nem mesmo dentro do Ministério da Economia há paz. Uma rivalidade entre os secretários Waldery Rodrigues, da Fazenda, e Salim Mattar, de Desestatização, está criando constrangimentos. Mattar foi escolhido para agilizar as privatizações, e, até o momento, quase nada saiu do papel. Gustavo Montezano, que até junho era seu braço direito, foi alçado ao posto de presidente do BNDES justamente para destravar os negócios. Ainda não surtiu efeito. E a rusga é séria, porque é das privatizações que o governo pretende tirar dinheiro a fim de custear o equilíbrio fiscal necessário para fazer funcionar a PEC do Pacto Federativo. Como o governo abre mão de receitas em favor de estados e municípios, as contas precisam estar em perfeita ordem para que o rombo da União não prejudique ainda mais o país. Espera-se que as divergências não criem rachaduras na blindagem que o ministério precisará construir para conseguir aprovar propostas consistentes. Os planos apresentados até agora são muito bons, e investidores e empresários receberam as medidas com surpreendente entusiasmo. A partir de agora, todas as partes envolvidas na aprovação desse importante conjunto de ações precisam reconhecer e desempenhar o papel que lhes cabe em benefício do país.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660