Estagnação e ajuste fiscal: os desafios da economia britânica
O premiê Keir Starmer descreve a situação econômica atual como um “buraco negro” e prepara ajustes nas contas e foca em produtividade
Os londrinos costumam dizer que o seu notório pessimismo faz com que saiam de casa preparados para chuva mesmo quando vai ter tempo bom e, com isso, acabam aproveitando mais a grata surpresa com o clima. O novo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, eleito em julho, está adotando a tática do guarda-chuva em dia nublado com a esperança de surpreender a população com raios de sol mais adiante. Starmer é o primeiro trabalhista a governar o Reino Unido depois de catorze anos de comando do Partido Conservador. Ele diz ter herdado um “buraco negro” de 22 bilhões de libras nas contas públicas, o equivalente a 158 bilhões de reais, e que as “coisas ainda vão piorar antes de melhorar”. Sua ministra das Finanças, Rachel Reeves, afirma que o conjunto dos indicadores econômicos é o pior desde a Segunda Guerra Mundial e que o orçamento anual que ela irá apresentar no final de outubro exigirá “decisões difíceis” em termos de aumento de impostos e cortes de gastos.
A economia britânica teve, de fato, um desempenho pior do que outras nações desenvolvidas nos últimos anos. O crescimento do produto interno bruto é baixo, ainda que nos primeiros meses deste ano tenha sido um pouco mais alto que na média dos países da zona do euro. A renda dos britânicos é praticamente a mesma desde 2007 — o aumento real de lá para cá foi de apenas 5,6%. A dívida pública está próxima de 100% do PIB, o nível mais alto desde a década de 1960 e cerca de 10 pontos percentuais acima da média dos países europeus. A taxa de juros está em um patamar elevado para os padrões britânicos, em torno de 5% por ano, sendo que em 2021 era zero. O aperto monetário nos últimos anos foi necessário para conter a inflação, que chegou a mais de 11% ao ano em 2022 — atualmente está em 2,2%, ainda acima da meta do Banco da Inglaterra, que é de 2%. O nível de investimentos e o comércio exterior também estão estagnados. Em anos recentes, as exportações, por exemplo, estiveram 15% abaixo do seu potencial, quando confrontadas com o desempenho de outras economias avançadas.
Atribui-se grande parte desse cenário ao Brexit, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE), decidido em referendo realizado em 2016. A motivação do divórcio tinha mais a ver com a soberania e a identidade nacionais do que com a economia, cujos impactos têm sido mais difíceis de contornar do que muitos brexiters imaginavam. Por exemplo, acreditava-se que a saída do bloco europeu poderia ser compensada com tratados comerciais bilaterais com outros países e com a própria UE. Não é tão simples. Um acordo fechado no final de 2020 com a UE derrubou tarifas e cotas para as trocas comerciais, mas as barreiras não tarifárias ainda atrapalham. Isso afetou principalmente as pequenas empresas britânicas, que tiveram queda de 30% nas exportações. “É justamente nessa faixa que estão as startups de alta tecnologia e inovação que poderiam ajudar a aumentar a produtividade do Reino Unido”, diz Natália Poiatti, doutora em economia pela London Business School e professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. “Por essa razão, uma das grandes incertezas em relação ao novo governo trabalhista diz respeito a como vai ficar a relação com a UE.”
Uma reversão do Brexit está descartada, mas Starmer promete fazer novos acordos para derrubar o que ele chama de “barreiras desnecessárias ao comércio”. São ajustes regulatórios em áreas como a indústria química e o agronegócio que poderiam, no primeiro caso, evitar 14,4 bilhões de reais em custos e, no segundo, aumentar em 22,5% a exportação de alimentos, beneficiando, por exemplo, os pequenos produtores britânicos de ovelhas. Trata-se, porém, de medidas de baixo impacto na balança comercial.
O maior desafio trazido pelo Brexit é o da mudança abrupta no padrão da mão de obra. Antes, havia um influxo muito grande de trabalhadores europeus, não só de garçons espanhóis e encanadores poloneses, mas também de profissionais altamente qualificados, que agora estão em falta. Em 2016, o Reino Unido recebeu um recorde de 300 000 imigrantes da UE. Atualmente, o saldo é negativo, ou seja, há mais cidadãos da UE saindo do país do que vice-versa. Por outro lado, a entrada de imigrantes não europeus no país aumentou, em sua maioria estudantes ou trabalhadores com baixa qualificação. “A carência de mão de obra, principalmente em serviços ou funções que exigem alta qualificação, diminui o potencial de crescimento econômico e de ganhos de renda no Reino Unido”, diz Walter Franco Lopes, mestre em economia pela Universidade de Londres e professor do Ibmec, em São Paulo.
O que realmente importa nos planos do novo governo trabalhista, portanto, são mais as reformas estruturais com impacto de longo prazo na economia e na sociedade do que propriamente os ajustes com efeito imediato nos indicadores. Isso significa, entre outras medidas, investir fortemente em políticas educacionais para ampliar a oferta de profissionais STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática), com o objetivo de aumentar a produtividade nos próximos anos. É o que pode voltar a fazer do Reino Unido uma potência exportadora, mesmo estando fora do bloco europeu.
O Reino Unido, como lembra Lopes, tem uma economia robusta e estável, e, por mais que impressionem os debates acalorados no Parlamento, não costuma haver mudanças radicais ou grandes aventuras quando o governo muda de trabalhista para conservador ou o contrário. No orçamento a ser apresentado em 30 de outubro, Rachel Reeves deve atacar o problema das contas públicas com o aumento de impostos para os mais ricos, como os sobre herança e ganhos de capital, e com a redução de alguns benefícios, como a dedução de taxas para quem tem previdência privada ou os subsídios para combustíveis. Por outro lado, espera-se que os gastos com o sistema de saúde, conhecido pela sigla NHS, aumentem, para enfrentar a reclamação dos cidadãos com esse serviço público. Calcula-se que a lista de espera para atendimento no NHS aumentou de 2,5 milhões de pacientes em 2010 para 7,6 milhões no final de 2023.
Os ajustes de curto e médio prazo são necessários, mas a situação econômica do país está longe de ser apocalíptica como pintam Starmer e Reeves. A inflação está quase sob controle e a expectativa é de redução gradual dos juros. “A dívida pública é bem maior do que a de outros países com classificação de risco triplo A, mas é uma dívida de qualidade, com prazo médio de catorze anos de maturidade e risco cambial baixíssimo, por ser denominada em uma moeda de reserva, que é a libra”, diz Natália Poiatti, que pesquisou o assunto para o livro Redução de Exposição ao Risco Cambial, previsto para 2025 pela Editora Unicamp. Além disso, os períodos de gastos públicos elevados no Reino Unido costumam ter um caráter anticíclico, ou seja, ocorrem para segurar o PIB em momentos de crise, como em 2007-2008 ou durante a pandemia de covid-19. O pessimismo do governo, sob nova direção, pode ser entendido como uma forma de colher, mais à frente, os frutos políticos de ajustes, pequenos ou grandes, que estão prestes a entrar no forno.
Publicado em VEJA, setembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 6