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Cuidado com saúde mental vira exigência legal nas empresas — entenda o que muda

Companhias devem cuidar do bem-estar psíquico de seus funcionários — e podem receber sanções se descumprirem as novas normas

Por Bárbara Nór
27 abr 2025, 08h00

Apartir de 25 de maio, empresas que atuam no Brasil precisarão incluir a saúde mental em sua lista de responsabilidades obrigatórias — da mesma forma que já fazem com os equipamentos de proteção individual (EPIs), como capacetes, luvas ou máscaras. A nova versão da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho e Emprego, passa a exigir o mapeamento e gerenciamento dos riscos psicossociais — fatores organizacionais, culturais e relacionais que podem contribuir para o adoecimento mental dos trabalhadores.

A regulamentação surge em meio a um cenário preocupante: em 2024, o Brasil registrou mais de 472 000 afastamentos por motivos de saúde mental, o maior número da última década e um aumento de 68% em relação ao ano anterior. Os transtornos de ansiedade lideram os afastamentos, seguidos pelos casos de depressão, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social.

arte saúde

A novidade trazida pela NR-1 não está em reconhecer que o trabalho pode causar doença, mas em exigir uma gestão sistemática e preventiva de fatores de risco. Tatiana Pimenta, presidente da Vittude, plataforma de terapia on-line e consultoria em saúde corporativa, explica que a norma vai além dos programas tradicionais que muitas empresas já mantêm. “O fato de uma empresa ter um programa de saúde mental e oferecer consulta psicológica não significa que ela está fazendo gerenciamento de riscos psicossociais”, diz Tatiana.

Ela ressalta que consultas psicológicas isoladas ou ações pontuais não são suficientes para lidar com sobrecarga, metas abusivas ou lideranças tóxicas. É necessário aplicar instrumentos objetivos, como escalas psicométricas, para mensurar variáveis como risco de burnout, assédio ou ideação suicida. Esses dados também podem indicar onde há perda de produtividade e maior rotatividade. Ainda assim, observa Tatiana, as empresas têm se mostrado resistentes à mudança.

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Isso se manifesta, por exemplo, em iniciativas como a da FecomercioSP, entidade que representa o setor de varejo e serviços no estado de São Paulo. Em abril, a federação solicitou ao governo a prorrogação da entrada em vigência da norma por um ano, alegando que as mudanças trariam custos extras e incertezas na fiscalização, especialmente para pequenas e médias empresas.

Menos estresse: iniciativas de cuidado reduzem o absenteísmo
Menos estresse: iniciativas de cuidado reduzem o absenteísmo (./Divulgação)

A percepção de que o tema é subjetivo demais para ser regulamentado ainda é comum. Fatima Macedo, diretora de certificação e excelência da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV), ressalta que esse é um equívoco. “Quando muita gente sente o mesmo, isso deixa de ser só percepção”, afirma Fatima. Ela explica que, embora se trate de questões emocionais, é possível mensurá-las com consistência e comparabilidade — quando diversos colaboradores apontam os mesmos problemas, o dado se torna quantitativo e, portanto, passível de gestão.

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Fatima também lembra que outras normas, como a NR-17, já mencionavam os riscos psicossociais. A diferença agora é que a NR-1 dá muito mais destaque para a obrigatoriedade de gerir os fatores psicossociais — e, com isso, pode haver consequências jurídicas.

Algumas empresas já vêm aplicando estratégias mais estruturadas de cuidado e prevenção à saúde mental. A Nestlé Brasil lançou, em 2024, o projeto Parceiros do B.E.M., em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo e pretende investir 1,5 milhão de reais no programa ao longo de 2025. A iniciativa visa a capacitar 600 funcionários para reconhecer sinais de sofrimento psíquico e orientar colegas aos canais de apoio da empresa. Fabricio Pavarin, gerente-executivo de saúde e bem-estar da Nestlé, explica que a estratégia começou com a desmistificação do tema junto às lideranças, em conversas com o presidente da empresa e em lives com os funcionários. “Procurar ajuda para problemas de saúde mental precisa se tornar tão natural quanto procurar atendimento porque quebrou o braço”, afirma Pavarin. Ele reconhece que, ao dar visibilidade ao tema, é possível que os números “piorem” inicialmente, mas esse movimento é esperado e necessário.

Equilíbrio: programa da Nestlé estimula atividades físicas e mentais
Equilíbrio: programa da Nestlé estimula atividades físicas e mentais (./Divulgação)
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Já o Grupo Cornélio Brennand, presente em sete estados e com atuação em energia renovável, produção de vidros planos e desenvolvimento imobiliário, passou a aplicar, em 2023, questionários específicos de riscos psicossociais em todas as unidades. Catharina Machado Ferreira, diretora de Pessoas & Sustentabilidade do grupo, conta que a medida foi resultado de um processo iniciado durante a pandemia, que incluiu ações como check-ups emocionais, rodas de conversa e treinamentos com lideranças. Ela destaca que muitas pessoas que sofrem com questões de saúde mental nem sempre percebem o problema. “Esperar que elas peçam ajuda pode ser tarde demais”, afirma Catharina. De acordo com ela, a identificação ativa dos riscos permite agir preventivamente e também avaliar a efetividade dos programas em curso, otimizando os recursos investidos em bem-estar.

Para muitas empresas, o maior desafio não é aplicar a pesquisa, mas lidar com os resultados. Juciano Massacani, presidente da GraalSeg, consultoria em segurança e medicina do trabalho, relata que, muitas vezes, os dados revelam problemas causados por dinâmicas internas difíceis de enfrentar — como culturas organizacionais autoritárias ou estilos de liderança inadequados. Além disso, existe o temor por parte dos funcionários de que a exposição de vulnerabilidades possa resultar em retaliação. “As pessoas têm medo de falar e sofrer represálias”, afirma. Massacani observa que ainda há quem veja a saúde no trabalho mais como um gasto do que como investimento estratégico.

As empresas que não se adequarem à nova NR-1 poderão sofrer multas do Ministério do Trabalho, como já ocorre com outras normas de segurança. Casos mais graves, principalmente quando envolvem denúncias ou fiscalizações do Ministério Público do Trabalho, podem gerar cobranças milionárias. Inicialmente, as fiscalizações devem focar setores que costumam ter mais problemas de saúde mental, como teleatendimento e bancos.

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O advogado Alexandre de Almeida Cardoso, sócio da área trabalhista do escritório TozziniFreire Advogados, conta que, em regra, espera-se que as primeiras fiscalizações sejam educativas. “A recomendação é registrar tudo — desde os dados coletados até as ações preventivas e corretivas tomadas”, diz. Na sua visão, o fato de até agora não haver um manual oficial de implementação tem gerado mais incertezas entre as empresas.

Enquanto algumas organizações aguardam definições mais claras, outras já colhem os frutos de investimentos em saúde mental. Um exemplo é a Foundever, multinacional francesa de centrais de atendimento com mais de 5 000 funcionários no Brasil, que em 2021 lançou o programa Everbetter. Laurent Delache, presidente da empresa no país, explica que os primeiros diagnósticos mostravam um clima organizacional frágil, com alta rotatividade e baixo engajamento — algo comum em um setor que lida com reclamações constantes e equipes jovens em início de carreira, além de pessoas da periferia, pessoas trans e refugiadas. Os resultados foram expressivos: o absenteísmo caiu de 13,4% para 8,5% e o NPS (índice de satisfação do cliente) subiu de 20 para 70 pontos. Um dos indicadores mais relevantes para mostrar o aumento da segurança psicológica, para Delache, foi o crescimento das denúncias de assédio, que hoje são levadas a um comitê que oferece suporte às vítimas e pune os agressores. A saúde mental tornou-se um pilar da estratégia de retenção da Foundever, segundo ele.

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Outro avanço importante foi o diálogo com contratantes, com a empresa negociando metas mais realistas baseadas em dados que mostram os limites operacionais sem comprometer a saúde dos funcionários. Essa abordagem representa uma mudança cultural significativa em um setor com histórico de impacto negativo na saúde mental. “Quando o cliente demanda uma coisa impossível, a gente prefere não fazer”, afirma Delache. “Não é saudável e não é sustentável.” É um bom princípio.

Publicado em VEJA, abril de 2025, edição VEJA Negócios nº 13

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