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Cruzada de Bolsonaro contra a Petrobras traz ameaça à Lei das Estatais

Presidente e aliados transformaram a empresa em inimiga da vez para garantir a reeleição, uma iniciativa que pode ter efeitos desastrosos

Por Felipe Mendes, Daniel Pereira, Victor Irajá, Larissa Quintino, Luana Zanobia Atualizado em 4 jun 2024, 11h35 - Publicado em 24 jun 2022, 06h00

Uma crise que se desenrolava em ponto de fervura há um ano e meio chegou, nos últimos dias, à plena ebulição. Depois de três presidentes da Petrobras demitidos, diversos projetos apresentados, discutidos e votados no Congresso, e uma alta de 56% nos preços médios da gasolina e de 87% no diesel neste ano, o desgaste entre o governo e o colosso petrolífero chegou a um ponto inédito. O governo de Jair Bolsonaro e seus aliados transformaram a estatal de regime misto em inimigo público e a recente escalada nos preços dos combustíveis se tornou o estopim para o lançamento de propostas que, em sua maioria, apenas variavam no grau de ataque ao bom senso.

O novo aumento nos preços anunciado na manhã de sexta 17 desencadeou de imediato um coro de disparos verbais contra a empresa e sua diretoria. Bolsonaro chamou a decisão de “uma traição ao povo brasileiro”. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), pediu cobrança em dobro de impostos sobre os lucros da empresa. Uma ameaça de devassa nas contas dos integrantes da cúpula da empresa foi colocada na mesa, com a proposta de criação de uma CPI sobre o assunto. O ministro André Mendonça, do STF, exigiu que a estatal revelasse os critérios para definir a política de preços dos últimos sessenta meses. No fogo cerrado, a Petrobras perdeu 27 bilhões de reais de valor de mercado em apenas um dia e o presidente da companhia, José Mauro Coelho, que já havia sido demitido do cargo por Bolsonaro e aguardava os trâmites para a posse de seu sucessor nomeado pelo governo, Caio Paes de Andrade, deixou o cargo, na segunda-feira 20.

LINHA DE FRENTE - Arthur Lira: ameaças de uma CPI da Petrobras e de rever a Lei das Estatais //
LINHA DE FRENTE – Arthur Lira: ameaças de uma CPI da Petrobras e de rever a Lei das Estatais – (Marina Ramos/Câmara dos Deputados)

Mais preocupante, no entanto, foi o surgimento de uma proposta para alterar a Lei das Estatais, um dos alicerces das regras de proteção contra casos de corrupção, intervenção política e uso eleitoreiro das companhias pertencentes ao governo. A lei estabelece restrições de contratações de dirigentes, compras e licitações e, no caso da Petrobras, é complementada por outras regras como a Lei do Petróleo, a Lei das Sociedades Anônimas e o estatuto interno. Faz parte do pacote ainda uma série de acordos assinados pela companhia nos Estados Unidos que garantem que a empresa não tome decisões que prejudiquem os seus acionistas minoritários por manipulação política do governo, como operar com preços abaixo do mercado com o obje­tivo de aliviar a inflação antes de uma eleição presidencial e legislativa.

Em meio a todos os petardos lançados pelo governo contra a Petrobras, uma das maiores preocupações dentro da empresa recai exatamente sobre uma ação contra a Lei das Estatais. Até mesmo as ameaças de CPI ficam num segundo plano, uma vez que a percepção geral entre os diretores e conselheiros é de que a decisão de aumento de preços foi tomada justamente para não burlar as regras. A medida só aconteceu depois de um comitê técnico elaborar um parecer em que identificou que, sem uma nova alta, os riscos de faltar combustíveis no mercado aumentariam muito. “Não tem nenhuma guerra contra o Brasil ou o Bolsonaro. A empresa tenta segurar o preço o máximo que pode”, diz Marcelo Mesquita, um dos quatro representantes dos acionistas minoritários no conselho. “Estão usando a Petrobras como bode expiatório e isso pode acabar liberando roubalheiras em outras estatais.” Com a desarticulação da Lei das Estatais, seria possível reduzir, por exemplo, a participação de técnicos nas esferas de decisão e substituí-­los por indicados políticos, o que permitiria maior ingerência nessas empresas aos governistas de turno.

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Em termos eleitorais, aumentar seu poder de ingerência também passou a ser crucial para Bolsonaro. Até as vigas dos edifícios da Praça dos Três Poderes sabem que a ofensiva do presidente da República e de seus aliados contra o preço dos combustíveis está vinculada ao pleito de outubro. O presidente culpa o aumento da gasolina, do diesel e do gás de cozinha pelo fato de ter estancado nas pesquisas depois de recuperar popularidade nos primeiros meses do ano. A carestia desses produtos é considerada o principal obstáculo à reeleição de Bolsonaro e resultou numa mudança de ânimo entre os integrantes da coordenação de sua campanha. Há poucos meses, era comum ouvir de auxiliares do presidente que ele ultrapassaria Lula até meados do ano e que a conquista de um novo mandato seria uma barbada. Agora, o diagnóstico é diferente. Fala-se em “momento complicado”, de “dificuldade”, e há preocupação com a possibilidade de vitória do petista no primeiro turno.

Diante do risco, Bolsonaro determinou a ampliação de sua proposta para combustíveis e intensificou o cerco à direção da Petrobras. Em reuniões com os ministros Paulo Guedes, da Economia, e Adolfo Sachsida, de Minas e Energia, e com os presidentes da Câmara, Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, acertou o lançamento de duas novas medidas. Uma delas é a duplicação do valor do auxílio pago pelo governo federal a 5,7 milhões de famílias para a compra de gás de cozinha, produto que subiu cerca de 30% em um ano. A outra é o pagamento de um voucher, de 400 reais, para até 900 000 caminhoneiros, grupo que apoiou Bolsonaro em 2018 e agora dá sinais de insatisfação com o presidente. “O Bolsonaro está perdido. O auxílio precisa ir para as pessoas que precisam. Nós, caminhoneiros, não queremos voucher, queremos dignidade para trabalhar”, diz Wallace Landim, o Chorão, presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava) e um dos líderes da greve dos caminhoneiros de 2018. “Dias atrás, completei o tanque em São Paulo e deu mais de 2 600 reais. Com os 400 reais, dá pra rodar uns 90 quilômetros. Saindo de São Paulo, não se chega nem a Campinas.” Frente à recepção negativa, o governo começou a considerar aumentar o valor do auxílio a até 1 000 reais por mês.

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CLIMA ELEITORAL - Alckmin, em 2006, e Graça Foster com Dilma: protagonistas em campanha -
CLIMA ELEITORAL - Alckmin, em 2006, e Graça Foster com Dilma: protagonistas em campanha – (Alan Marques/Folhapress; Joel Rodrigues/FRAME/.)

As novas bondades, que valeriam até o fim deste ano, dependem da aprovação de uma proposta de emenda constitucional e não se enquadrarão nos limites do teto de gastos, que será mais uma vez driblado em razão das necessidades eleitorais do presidente. Segundo um coordenador da campanha à reeleição, as novas medidas são a última cartada no campo da liberação de recursos para tentar reverter o quadro desfavorável nas pesquisas. “Chegamos ao nosso limite”, declara. No começo de junho, o governo já havia lançado a primeira etapa de seu pacote dos combustíveis, que previa a aprovação pelo Congresso de um projeto que fixa um teto de 17% a 18% para a alíquota de ICMS de serviços essenciais, como combustíveis e energia. Na ocasião, também foi anunciada uma compensação da União aos estados que zerarem a alíquota de ICMS sobre diesel e gás de cozinha. O Ministério da Economia estima que todas as iniciativas anunciadas custem cerca de 50 bilhões de reais, o equivalente a 56% do montante previsto em 2022 para o Auxílio Brasil, que atende 18 milhões de famílias. É aventada a possibilidade, entretanto, de transformar essa PEC de compensação aos estados num aumento do Auxílio para 600 reais.

De olho numa agenda positiva em meio a um momento de tanta dificuldade, Bolsonaro pretende transformar a sanção ao projeto que fixa o teto para o ICMS de serviços essenciais em peça de propaganda eleitoral. O presidente tem se esforçado para vender a ideia de que faz o que pode para reduzir o preço dos combustíveis, mas é impedido de levar benefícios à população. É por isso que ele pressiona os governadores, ataca a diretoria da Petrobras e lembra com frequência dos desfalques bilionários provocados pelo PT na companhia. Sua meta é terceirizar a responsabilidade pelos problemas. A questão é que as pessoas esperam que o presidente do país resolva os pepinos que apareçam pela frente — e que não fuja de sua missão.

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Na Petrobras, o conselho de administração está disposto, como forma de esfriar a crise, a aprovar nos próximos dias a indicação de Paes de Andrade à presidência, mesmo que ele não tenha experiência no setor — um pré-requisito exigido para o cargo. Ex-secretário da Economia e aliado de Guedes, Andrade terá missões bem definidas, como evitar novos reajustes dos combustíveis até a eleição. Pode funcionar, se os preços internacionais não dispararem mais. Mas não há nenhuma garantia de que isso aconteça. O caminho, na verdade, deveria ter sido outro. “O governo já tinha de ter feito políticas públicas há mais tempo, criado talvez um fundo, programas sociais de voucher caminhoneiro, taxista, aumentando Bolsa Família com auxílio gás, e não fez”, afirma o consultor Adriano Pires, que foi indicado por Bolsonaro à presidência da Petrobras antes de Coelho, mas decidiu não aceitar por risco de conflito de interesses. “Essa crise é um combinado de erros. Faltou política pública adequada no tempo certo, faltou sensibilidade política da Petrobras e faltou comunicação entre a empresa e o governo.”

Além de torcer pelo congelamento do preço dos combustíveis até a eleição, Bolsonaro e os coordenadores de sua campanha esperam, agora, ajuda da nova direção da Petrobras para garantir que as distribuidoras repassem aos consumidores a redução de ICMS e de tributos federais nos combustíveis. Há o temor de que essas empresas embolsem o benefício e ampliem suas margens de lucro — e de que o preço final ao consumidor não mude. Por isso, haverá muita pressão sobre elas nas próximas semanas. O governo, inclusive, não descarta a possibilidade de tabelar os preços para as distribuidoras.

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No mercado financeiro, medidas como essa têm sido mal recebidas, por distorcer a lógica do setor e pelo potencial de trazer consequências negativas para o futuro. Um custo artificial pode incentivar o consumo de um produto que está em escassez, o que, pelas regras do livre mercado, faz sentido ficar mais caro, dado o cenário internacional marcado pela guerra na Ucrânia. Com isso, aumentaria o risco de falta de combustíveis ao consumidor. O Brasil não é autossuficiente em petróleo refinado como é em petróleo bruto, e precisa importar parte do que é consumido no país, chegando a 30% do diesel. Se a Petrobras cobrar valores inferiores aos internacionais, os importadores não trarão mais os produtos de fora. “A gente não teve no mercado de refino o mesmo grau de abertura a investimentos externos que ocorreu na exploração de petróleo. As iniciativas da Petrobras para construir refinarias fracassaram e não há outros interessados em investir”, afirma Décio Oddone, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e CEO da Enauta. “Agora, dificilmente teremos novos projetos de refinarias num país periférico, ainda mais em um cenário global de transição energética para energias mais limpas.”

arte alta rotatividade

Se a Petrobras vender refinarias, conforme o plano apresentado pela empresa ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) — que está atrasado em seu cronograma —, podem-se criar incentivos para novos donos dessas unidades investirem mais para aumentar a produção. Mas, se a formação de preço permanecer sendo questionada, isso não deve acontecer. “Se a Petrobras continuar a praticar preços abaixo do mercado, será um problema para os competidores do setor e vai afastar investimentos no Brasil”, alerta Alexandre Barreto, ex-­presidente e atual superintendente geral do Cade.

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Infelizmente, para quem acompanha as eleições presidenciais brasileiras, tentativas de fazer uso político da estatal não são exatamente uma novidade. Em 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso segurou o preço do gás para tentar ajudar o seu apadrinhado, José Serra, a ser eleito. Quatro anos depois, seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, acusava o então rival (e hoje seu vice), Geraldo Alckmin, de planejar a privatização da Petrobras, o que o estimulou a aparecer com uma jaqueta cravejada com logomarcas das estatais para não perder votos. Já Dilma Rousseff, além de ter presidido o país durante o escândalo do petrolão, obrigava a diretoria da empresa, encabeçada por Graça Foster, a praticar preços abaixo do mercado, como forma de não aumentar a inflação no país — plano que Bolsonaro nitidamente quer repetir. Ninguém admitirá oficialmente, mas dentro da Petrobras estima-se que a empresa deixou de lucrar 40 bilhões de reais durante os anos do PT por causa dessa estratégia forçada de comercialização. Por outro lado, a Polícia Federal estimou, em 2015, em 42,8 bilhões de reais o custo dos desvios identificados pela Lava-Jato. Levando tais números em consideração, percebe-se que utilizar politicamente o colosso petroleiro tem efeito comparável aos saques promovidos pela corrupção. Juntos, então, são uma combinação explosiva.

Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795

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