Como uma onda: na pandemia, mercado de barcos vive ótima fase
A possibilidade de trabalhar em qualquer lugar e o desejo de aproveitar a vida ao máximo explica o avanço de um ramo que cresceu 30% em 2020
“Navegar é preciso, viver não é preciso”, escreveu Fernando Pessoa. O significado de “preciso” no verso é de exatidão, não de necessidade. Navegar é algo certo, enquanto viver é incerto. E a Covid-19 impôs essa incerteza sobre muita gente, fazendo com que famílias inteiras mudassem seu estilo de vida, em busca de uma rotina mais segura e menos estressante. Seguindo a tendência observada de migração para o interior e para a praia, o setor náutico também celebrou um surpreendente resultado: o mercado nacional encerrou 2020 com um crescimento de 30%, segundo dados da Associação Náutica Brasileira.
O casal catarinense Gabriel e Fabiana de Faria contribuiu para esse cenário com uma radical mudança de ares. Cansados da rotina de trabalho em Florianópolis — ele como vendedor de carros, ela como médica —, há tempos estudavam a possibilidade de velejar em um período sabático para cuidar do filho, Antônio, de 2 anos. “A pandemia aguçou nossa percepção de que a vida passa rápido, que tudo é tão efêmero, que não podemos demorar para realizar um sonho. Por que não agora?”, questionou-se Fabiana, talvez inspirada no poeta português. Eles venderam carro e apartamento, abandonaram os empregos, trocaram o barco que usavam nos fins de semana por um maior, de 34 pés — com geladeira, chuveiro quente e TV — e, além do filho, levaram para a aventura os três gatos da família, Elvis, Amy e Madonna — os felinos ficam entocados durante o dia e geralmente só saem ao convés à noite.
A nova vida no mar começou em dezembro, sem data para terminar. Viajando de praia em praia, o objetivo é um dia se lançar em alto-mar, chegando à Polinésia Francesa. Fabiana arrumou um novo trabalho — consultora médica virtual —, enquanto Gabriel faz as vezes de capitão, cozinheiro e mecânico da embarcação. Entre os perrengues, destacam as chuvas e ventos repentinos e a necessidade permanente de economizar água. Mas o visual compensa: “Estamos cercados por golfinhos, tartarugas, peixes, sentindo o ar puro”, diz Gabriel. Há duas semanas, eles ancoraram em Ilhabela, no litoral paulista, onde conheceram pessoalmente o casal que os inspirou.
Quatro anos atrás, Adriano Plotzki e a esposa, Aline, também deixaram para trás uma vida confortável, em uma casa de 400 metros quadrados em São Paulo, para viver sobre as águas. A fonte de renda do casal de publicitários é o canal no YouTube #SAL, no qual mostram os bastidores das travessias. Em uma de suas postagens, Adriano ouviu sessenta nômades e concluiu que o custo médio mensal dos moradores do mar era de 3 600 reais. “Pode ser mais ou menos, depende do padrão de vida. A gente gasta pouco e é bem mais feliz”, conta Adriano, que comprou o veleiro, seu único bem agora, por 150 000 reais.
Enquanto isso, em terra firme, o mercado de embarcações sofre para dar conta da demanda e os valores sobem. A Delta Yachts, maior produtora de veleiros do país, tem encomendas previstas até 2023 e em breve lançará uma nova linha de modelos com preço de até 2 milhões de reais. A fabricante de lanchas Triton Yachts fechou 2020 com o aumento de 40% no faturamento e começou 2021 com o maior volume de entregas dos últimos cinco anos. Entre os modelos mais procurados da marca, os preços variam de 400 000 reais a 2,5 milhões de reais. Parte dessa demanda deve-se ao aumento do interesse em viver longas temporadas — às vezes, para sempre — em pleno oceano. A procura é tão grande que os barcos usados estão em falta no mercado. O fenômeno também provocou uma explosão na ocupação das marinas. No Rio de Janeiro, a Marina da Glória recebeu 10% mais barcos durante a pandemia do coronavírus. No Iate Clube do Guarujá, no litoral paulista, a alta chegou a 27% no ano passado.
Uma nova possibilidade, que já faz sucesso na Europa e nos EUA, deve dar as caras por aqui em breve: a casa flutuante, uma residência de formato convencional, mas cuja tecnologia permitirá navegar e ancorar. Modelos equipados com todo o conforto do lar costumam custar uma pequena fortuna no exterior. Em Miami, nos EUA, uma casa flutuante de 241 metros quadrados não sai por menos de 5 milhões de dólares (algo como 27 milhões de reais). Não é bem o gosto dos adeptos do minimalismo, como os casais entrevistados por VEJA, mas não deixa de ser um ousado estilo de vida — igualmente aventureiro.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726