Como as corporações se organizam para barrar reformas econômicas
Atrasos e falta de organização do Planalto abrem brecha para que setores se articulem —e Bolsonaro tira o pé do acelerador
Foram várias as agendas que levaram Bolsonaro a ser eleito presidente. Uma das mais importantes foi a defesa de um enfrentamento com o corporativismo do setor público e com a pesada máquina estatal brasileira. E o governo obteve algumas vitórias nessa batalha. Entre as mais vistosas estão a escolha de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, um nome que não se encontrava na lista tríplice elaborada por membros do Ministério Público Federal, e a aprovação da reforma da Previdência, com cortes de privilégios históricos para o funcionalismo. Mas um episódio recente mostra que, por ora, as corporações conseguiram pôr a administração federal contra a parede. Pouco depois de o ministro Paulo Guedes dar uma entrevista prometendo enviar ao Congresso uma reforma administrativa que visa a redesenhar o plano de carreira dos servidores, além de flexibilizar sua estabilidade e readequar salários, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), veio a público desmenti-lo: o projeto, segundo ele, ficou para 2020. Explicação não houve, mas o tempo deixou claro o que estava acontecendo. Nos dias seguintes, pulularam notícias de que vinham sendo organizadas greves de petroleiros, servidores públicos e, a mais temida entre todas, uma paralisação de caminhoneiros. E o governo piscou.
O timing da ofensiva das corporações não foi casual, e alguns fatores ajudaram a elevar o tom da reação. O mais explícito foi a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reenergizou a oposição com seus discursos conclamando apoiadores a atacar a agenda do ministro Paulo Guedes. Mas o governo tem sua parcela de culpa. A articulação política vem sendo um desastre — a própria aprovação da reforma da Previdência deve-se mais aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que aos encarregados do Executivo — e a comunicação com a população não tem sido das melhores.
Na semana passada, uma tentativa de conseguir recursos para financiar a redução dos custos de contratações, conhecida como Medida Provisória do Emprego Verde e Amarelo, resvalou em um desastre comparável ao da sua antecessora, que pretendia reavivar o imposto do cheque, a CPMF, por meio da reforma tributária, para pagar essa conta. A nova medida previa o desconto de 7,5% do valor pago como seguro-desemprego aos trabalhadores demitidos como mecanismo de arrecadação. “Pegou muito mal. O governo apanhou não apenas dos críticos contumazes, mas também de muita gente simpática à agenda econômica. O presidente chegou a repreender o ministro da Economia em seu gabinete”, diz um importante membro do Ministério da Economia.
Guedes também se tornou alvo com os grandes protestos que ocorrem atualmente no Chile e já deixaram 23 mortos. O fato de ele ter lecionado naquele país durante a implantação do projeto econômico, entre as décadas de 70 e 80, lhe rendeu a alcunha de “Fã do Pinochet”, referência ao ex-ditador chileno. De forma equivocada, as reformas que Guedes pretende realizar no Brasil têm sido comparadas ao modelo econômico que hoje é criticado nas ruas do país sul-americano. As manifestações e suas consequências trágicas seriam a “prova cabal” de que o projeto trouxe sofrimento ao povo — obviamente nenhum dos defensores dessa interpretação tacanha leva em conta o fato de que foi tal projeto que tornou a economia do Chile a mais avançada e a menos desigual da América Latina.
O ministro, por sua vez, também não tem se esforçado para desconstruir o mito que busca associar o modelo liberal que defende a regimes de exceção. Na segunda-feira 25, em um pronunciamento mais que infeliz, ao buscar desqualificar as tentativas de bloquear as reformas, deu munição a rivais com uma frase desastrosa. “Quando o outro lado ganha, com dez meses já chamam todos para quebrar a rua? Não se assustem se alguém pedir o AI-5”, disse em uma entrevista coletiva nos Estados Unidos (leia a reportagem).
Sob o impacto das críticas feitas à proposta da equipe econômica de taxar o seguro-desemprego, o presidente Jair Bolsonaro decidiu pôr as prioridades políticas à frente das econômicas. O objetivo do Palácio do Planalto é que nenhum projeto do Ministério da Economia seja encaminhado ao Congresso até que cessem as ameaças de manifestações contrárias à agenda apresentada por Guedes. Atualmente, Bolsonaro está concentrado numa mudança de rota que culminou no afastamento de Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, da linha de frente na articulação política. Para seu lugar, foi escalado o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, general de quatro estrelas e amigo de caserna do presidente, agora transformado em uma espécie de articulador geral do governo. Além da reforma administrativa, entraram em compasso de espera a reforma tributária e o projeto de lei para a criação de uma via rápida para as privatizações — o único que ainda tem chance de se materializar até o fim de dezembro.
Enquanto o governo busca se estruturar para retomar seus projetos, funcionários públicos, petroleiros, sindicalistas e estudantes pressionam para que as propostas sejam abandonadas, sob a ameaça de parar o país. A Federação Única dos Petroleiros (FUP) chegou a marcar uma greve para a última segunda-feira, 25, que acabou frustrada por uma determinação do ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Martins, que proibiu a paralisação. Contudo, o maior risco está na influência de sindicatos de empresas transportadoras e de funcionários públicos que tentam cooptar os articuladores do movimento dos caminhoneiros para uma ampla greve — aqueles mesmos que pararam o país no fim de maio de 2018. Os motoristas chegaram a anunciar em aplicativos de mensagens que a greve ocorreria na sexta-feira 29. Líderes da categoria, como Wallace Landim, o Chorão, mobilizam-se para esvaziar tais iniciativas. “Há um novo movimento político, pressionando as lideranças e o Congresso. Não é a hora certa. A gente está vendo o crescimento das fábricas e as empresas voltando a tomar corpo, e tenho certeza de que no ano que vem vai ser melhor”, avalia Landim, que é aliado de Bolsonaro. Na ausência das lideranças, muitos caminhoneiros estão se alinhando com grupos de esquerda, numa tentativa de conseguir mais benesses do governo. Na pauta de reivindicações está entrando de tudo, de aumento no piso do frete, calculado pela Escola de Agronomia da USP, a pedidos explícitos para extinguir a reforma administrativa.
Como novo articulador, o general Ramos é o homem designado para afastar de vez os riscos que esses grupos representam e, de quebra, fazer avançar a agenda econômica. Dentro do Ministério da Economia, a figura de Ramos é vista com desconfiança. Teme-se que o general não consiga manter o alinhamento com o Congresso. Já Guedes precisará redobrar os esforços para obter a aprovação de uma agenda complexa que abriga várias reformas ao mesmo tempo. Não é hora de vacilar.
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663