Começou mal: presidente do Senado quer aprovar auxílio sem contrapartidas
Esse é um filme que o Brasil já viu antes e só pode acabar em tragédia
Um dos conceitos que o ministro da Economia, Paulo Guedes, defende como marca de sua gestão está resumido na frase “Mais Brasil, menos Brasília”. Na prática, isso aconteceria de duas formas. A primeira seria fazer com que a economia dependesse menos dos investimentos do governo federal, substituídos por recursos da iniciativa privada. A outra seria aumentar a autonomia de estados e municípios. Essa última parte tinha as digitais de Mansueto Almeida, que foi secretário do Tesouro Nacional até o meio do ano passado. Era de tal forma identificada com seu autor que a proposta de ajuda aos entes da federação em dificuldades, desde que respeitados alguns preceitos de responsabilidade, acabou agrupada em um pacote de medidas apelidado de Plano Mansueto.
Nas últimas semanas, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator de duas Propostas de Emenda Constitucional (PEC) essenciais para o país, a Emergencial e a do Pacto Federativo, encontrou uma possibilidade de fazer o projeto, até então dormente, andar. Ele retirou o chamado Plano Mansueto da PEC do Pacto Federativo — que trata da relação entre a União e os entes federativos — e o incluiu na PEC Emergencial, que está sendo tratada com caráter de urgência no Congresso, uma vez que permitirá a volta do pagamento do auxílio emergencial. Como condicionante ao retorno do benefício social, Guedes e sua equipe estipularam um limite de gasto de aproximadamente 30 bilhões de reais e incluíram contrapartidas com o estabelecimento de compromissos de cortes nos gastos governamentais.
Como toda medida que busca garantir freios e contrapesos à gastança desenfreada, a PEC Emergencial acabou se tornando alvo de polêmica e acirrados debates nos últimos dias. Com o relator Bittar acompanhando o presidente Jair Bolsonaro em uma viagem ao Acre na última quarta-feira, 24, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, costurou — equivocadamente — um acordo com as lideranças partidárias que permitisse simplificações no projeto, para que seu escopo se restringisse basicamente à volta do auxílio. Por essa proposta, o Plano Mansueto seria excluído porque as desvinculações que prevê — de gastos obrigatórios mínimos com saúde e educação — enfrentam resistência entre os parlamentares. A proposta original inclui o fim da obrigatoriedade de a União gastar 18% da receita com educação e 15% com saúde, enquanto estados e municípios têm de arcar com, no mínimo, 25% e 12% dos investimentos, respectivamente, nas duas áreas. Outro ponto importante defendido pelo ex-secretário do Tesouro é a criação de um sistema de pontuação que indique a situação de crédito de estados que, mesmo em dificuldades, possam obter empréstimos do governo federal. Desde que, obviamente, se comprometam a adotar medidas de ajustes fiscais.
Se confirmada, a simplificação da PEC Emergencial será um desastre para as contas públicas e se tornará mais um motivo de stress para Guedes, que sabe quanto a aprovação do auxílio emergencial é importante para Bolsonaro. O benefício vem sendo encarado no Planalto como passo fundamental para resgatar o apoio da população mais pobre e afetada economicamente pela pandemia de Covid-19, ponto crucial nos planos de reeleição do presidente. Mas a proposta gestada pelo Congresso Nacional, sem as compensações exigidas pelo ministro, é mais um exemplo de populismo econômico. O governo chega, distribui dinheiro sem olhar o caixa — e o país inteiro paga a conta depois. Isso tudo em um momento já tão delicado para a economia.
Sob vários aspectos, a decisão do presidente do Senado de fatiar a PEC é um erro grave. O primeiro deles é que o Plano Mansueto traz dispositivos relevantes para auxiliar na recuperação das finanças dos estados, alguns deles com 95% da receita comprometida com a folha de pagamento dos servidores. Aliás, defende-se de forma demagógica o engessamento do Orçamento para as verbas de saúde e educação, mas a verdade é que muitas vezes elas são usadas de forma pouco eficiente, dando margem a despesas desnecessárias (e corrupção) apenas porque os recursos estão disponíveis. A segunda questão é que, uma vez removidas do texto da PEC, tais propostas não retornarão tão cedo ao Parlamento — isso se algum dia de fato voltarem. Estima-se que, sem as compensações e salvaguardas previstas, serão necessários dez anos para cobrir as despesas decorrentes da volta do auxílio emergencial, considerando-se uma contribuição de 250 reais para 35 milhões de pessoas durante quatro meses. Assim como a legião de desfavorecidos não pode esperar muito pela ajuda financeira, o Brasil também não pode perder essa oportunidade.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727