As usinas térmicas que cabem na transição para a economia de baixo carbono
A finlandesa Wärtsilä apresentou neste ano a primeira usina em escala comercial capaz de funcionar integralmente a hidrogênio

O Brasil tem mais de 100 usinas térmicas movidas a combustíveis fósseis. Dessas, dez queimam carvão mineral, a pior opção que existe, para produzir energia cara e poluente. Quando a falta de chuvas ameaça a geração hidrelétrica, como aconteceu na seca histórica deste ano — que deverá ser o mais quente já registrado —, as térmicas entram em ação. A seca ainda vai fazer efeito por mais tempo, mas a participação dessas usinas na geração já subiu de 8,9% em 2023 para 10,1% nos doze meses até outubro. O problema é agravado pelo lobby do atraso e de interesses estreitos, que volta e meia empurra ao país decisões péssimas, como a prorrogação até 2040 da compra de energia a carvão ou a construção de usinas a gás sob um modelo sem sentido econômico. Descrito assim, o retrato parece mais feio que a realidade. Há mudanças em andamento, para melhor — muito melhor.
A energia contratada das usinas térmicas deve diminuir até 2028. A associação do segmento já tentou transformar isso num alerta, mas a notícia é boa para os demais brasileiros (e para o planeta). Da capacidade total de geração de eletricidade no Brasil, que é de 204 gigawatts (GW), as fontes fósseis garantem 15%, e caindo. As fontes eólica e solar, limpas, fornecem parcela maior, de 22%, e crescendo (o total de 100% se completa principalmente com geração hídrica e de biomassa). A matriz elétrica brasileira ainda vai ficar mais limpa nos próximos anos. “Demora um tempo para o sistema dar conta de uma nova lógica, com energia solar, eólica e geração distribuída”, diz o pesquisador Emilio La Rovere, do Programa de Planejamento Energético da Coppe (unidade de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro). “Mas o investimento voltou, novas soluções estão aí na esquina e a situação tende a se normalizar. É um desafio para todos os países.”

No Brasil e no mundo, o negócio de fornecer energia ficou mais complicado. Os sistemas precisam oferecer mais energia, emitir menos carbono, manter-se estáveis diante de eventos climáticos extremos e atender a picos muito acima da média. Em seu relatório global de eficiência energética, divulgado em novembro, a Agência Internacional de Energia destacou três países como exemplos de disparada do consumo em 2024: Índia, Turquia e Brasil. Por aqui, houve recorde histórico de demanda por eletricidade em março. “O regime de chuvas mudou, alternando períodos extremos, e o perfil da demanda mudou”, diz João Carlos Mello, presidente da consultoria especializada Thymos. “Por isso, agora precisamos de um novo tipo de segurança, para atender com eficiência a picos de consumo.”
As principais fontes renováveis de hoje — e que vão se tornar o alicerce do sistema — enfrentam oscilações ou intermitência, por causa de ciclos naturais. A qualquer dado momento, pode não haver sol, vento ou água nos reservatórios suficiente para atender às demandas (existem fontes renováveis estáveis, como geotérmica e biocombustíveis, mas elas não estão à disposição na escala, nos locais e no baixo custo necessários). Por isso, completar esse quebra-cabeça exige mais peças do que apenas hidrelétricas, turbinas eólicas e painéis solares.

Parte da solução está em novas tecnologias. A finlandesa Wärtsilä apresentou neste ano a primeira usina em escala comercial capaz de funcionar integralmente a hidrogênio. De fabricante de motores a diesel, inclusive para termelétricas, a empresa passou a construir equipamentos aptos a funcionar com um cardápio crescente de combustíveis renováveis, além do hidrogênio — etanol, metanol, metano, metano sintético, amônia e biodiesel, entre outros, além de misturas variadas. Concorrentes como a alemã Siemens, a japonesa Mitsubishi e as americanas GE e Caterpillar buscam a mesma versatilidade. Há uma corrida no setor para testar novas fontes de energia, adaptar usinas antigas para que funcionem com combustíveis novos e construir sistemas gigantes de armazenagem de energia, capazes de aproveitar períodos de muito sol, vento e chuva, e usar essa eletricidade num momento posterior.
Para todas elas, usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis têm um lugar na matriz energética do futuro, mas com várias condições. Precisarão consumir cada vez menos combustível. Usinas a gás natural têm dado um bom exemplo. Cutler Cleveland, professor na Universidade de Boston, mostrou que a eficiência desses equipamentos cresceu de 34% em 2000 para 44% hoje, bem à frente da média dos combustíveis fósseis. As novas térmicas precisarão também ser pequenas, aguentar um ritmo bem mais intenso de liga e desliga e subir rapidamente a “rampa de entrada” ou ramp-up — passar logo do estado de espera para a geração máxima, se for preciso. Termelétricas vão jogar em equipe, apoiando o sistema só nos momentos necessários. A palavra-chave, para o setor inteiro, passou a ser “flexibilidade”. “Devemos ter usina térmica como seguro-saúde — temos, para caso de necessidade, mas não queremos usar”, afirma Jorge Alcaide, presidente da Wärtsilä Energy no Brasil.

Esse estado de graça elétrico exige inovação não só tecnológica, mas também de gestão. Nos Estados Unidos, os administradores dos sistemas do estado de Nova York e da Interconexão Leste (treze estados no sudeste do país) vêm apostando em “mercados de capacidade”. A ideia é remunerar empresas não por fornecer energia continuamente, e sim por manter estrutura à disposição só para os momentos de pico de demanda. Alemanha e China apostam em modelos variados para armazenar grandes quantidades de energia e usar só quando necessário — o que parecia inviável há alguns anos. Austrália e Dinamarca vêm implementando sistemas com ênfase na flexibilidade extrema, o que exige mais tecnologia digital para administrar a rede e novos tipos de contrato entre os participantes.
“A combinação dessas abordagens é fundamental para garantir a estabilidade e a eficiência dos sistemas elétricos à medida que se expandem as fontes renováveis”, sugerem os autores de uma nota técnica do Ministério de Minas e Energia, apresentada em setembro. O governo está por marcar um novo Leilão de Reserva de Capacidade, para contratar projetos que iniciariam atividades em 2027. O ministro Alexandre Silveira indicou que, pela primeira vez, as empresas participantes vão precisar oferecer sistemas com baterias. A seca de 2024 assustou — mas, pelo menos no setor de energia, o país sai dela com expectativas melhores do que quando entrou.
“Termelétricas podem funcionar só por alguns minutos”

A companhia finlandesa Wärtsilä, 190 anos de idade, fabrica motores a diesel, mas desde a década passada lança baterias gigantes e equipamentos movidos a combustíveis renováveis, como hidrogênio. Assim, entrou na lista das 100 Empresas Mais Influentes do Mundo da revista americana Time em 2023. O executivo sueco Anders Lindberg, presidente da divisão Wärtsilä Energy, veio ao Brasil em outubro ouvir clientes e, numa parada no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, conversou com VEJA NEGÓCIOS.
Quando o Brasil tem seca, usa mais termelétricas, grande parte delas à base de combustíveis fósseis. Mas esses combustíveis pioram a crise climática e as secas. Estamos numa armadilha? Energia solar e eólica, as mais baratas do mundo, são intermitentes. A base hidrelétrica do Brasil é boa, mas sofre nas secas. Por isso precisamos de balanceamento, com sistemas ajustáveis. Podemos conseguir flexibilidade com baterias e com termelétricas flexíveis, a gás natural, ou a diesel e biocombustíveis, com capacidade para aumentar e diminuir sua geração de energia muito rapidamente. Podem funcionar por semanas, horas, minutos. Assim, equilibram o sistema e permitem que ele se apoie em fontes renováveis.
Qual é o lugar dos combustíveis fósseis no futuro? Gás natural é um bom combustível de transição. Ainda veremos diesel onde for difícil conseguir gás. Não há nada errado em usar diesel se for só para balanceamento. A Wärtsilä trabalha na descarbonização de um cliente no Caribe (Aqualectra, em Curaçao). Fornecemos a ele baterias e uma usina térmica a diesel, que funciona só nas horas em que a fonte renovável não atende à demanda. Assim, apoiamos a implementação de fontes renováveis e reduzimos as emissões totais de carbono.
A Wärtsilä pesquisa muitos combustíveis. Dá para saber quais vão ser mesmo relevantes? Estamos nos preparando para o futuro. Temos pronta uma usina movida a hidrogênio e motores que podem funcionar com 25% de hidrogênio. A ideia é os clientes se sentirem confiantes de que podemos oferecer a tecnologia quando hidrogênio, amônia ou e-metano se tornarem disponíveis em 2030, 2035, 2040. Mas não acho que vai haver uma solução só.
Publicado em VEJA, novembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 8