Após enterrar privatização, governo vê desafios para revitalizar Correios
Para colocar o plano em ação, a gestão atual terá de lidar com prejuízos recorrentes e avanço da concorrência
Na noite de 1º de janeiro de 2023, poucas horas depois de subir, pela terceira vez, a rampa do Palácio do Planalto para tomar posse, o presidente Lula assinou os primeiros atos de seu novo governo. Entre eles, estava o despacho que retirava os Correios da lista de privatizações deixada pela gestão anterior. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) já tinha projeto de venda pronto, aprovado na Câmara, e era a próxima na fila de desestatizações do antecessor Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de vendas superlativas como as da BR Distribuidora e da Eletrobras. A nova gestão não só abortou a privatização como montou um plano de reestruturação para a companhia cujo principal alicerce é fortalecê-la como uma empresa pública e estratégica para o país. “Não sei se a nossa missão é ter lucros, mas é estar em todos os locais e atender bem a população”, disse a VEJA o presidente dos Correios, Fabiano Silva dos Santos. “O nosso grande objetivo é fazer isso de forma sustentável, com as despesas e receitas em equilíbrio. Se fosse só para ter lucro, fecharíamos várias agências e pronto.”
Santos foi um dos articuladores do Prerrogativas, grupo de advogados que se destacou na briga jurídica pela revisão da Operação Lava-Jato e da prisão de Lula. Professor especializado em previdência e direito público, ele foi indicado por Lula para presidir os Correios desde o início do ano passado. O plano desenhado por Santos prevê novas atividades para os Correios, construção de mais centros de distribuição, investimentos em tecnologia e resgate das ações de marketing. Desde 2016, a verba para elas foi zero. O patrocínio ao festival de música Lollapalooza, em março, marcou a primeira campanha da marca depois dos oito anos de jejum. A guinada inclui ainda retomar as contratações, voltar a reajustar os salários acima da inflação, recompor benefícios cortados e reverter o que a nova diretoria denomina um sucateamento herdado do projeto de privatização da antiga gestão. “Há distritos em que os carteiros estão tendo que andar até 20 quilômetros por dia”, diz Emerson Marinho, secretário-geral da Fentect, federação dos sindicatos dos carteiros, que reclama da sobrecarga de trabalho.
Atualmente, os Correios estão entre as estatais que mais empregam. São 85 000 funcionários — em 2016, eram 115 000. De acordo com Santos, até 9 000 vagas serão reabertas, e um edital de concurso será divulgado em setembro. A redução de pessoal, por meio de programas de demissão voluntária, junto com o enxugamento dos mais de setenta benefícios extras que tinham, foi uma das principais medidas saneadoras pré-privatização no governo Bolsonaro. Elas colaboraram para o lucro recorde, de 2,2 bilhões de reais, que a companhia chegou a ter em 2021. Em 2022, entretanto, já com a tramitação da privatização empacada, o resultado cairia a um prejuízo de 808 milhões de reais. Em 2023, primeiro ano do mandato petista, as perdas foram de 597 milhões de reais. A empresa garante, porém, que não será necessário socorro do governo. “Não houve e não há previsão de aportes nos Correios”, informou o Tesouro, em nota.
A missão de transformar os Correios em uma estatal blindada contra novos discursos de privatização não é fácil. A começar pelos traumas políticos, especialmente em um momento em que crises de interferência de Lula em estatais maiores, como a Petrobras, arrepiam os cabelos de investidores. Se o ímpeto político pode atropelar os negócios em um gigante global listado em bolsas de valores dentro e fora do país — como é o caso da Petrobras —, não é difícil imaginar o que ocorreria naquelas que são fechadas e 100% controladas pela União, como são os Correios.
Tradicional reduto de loteamento político, a presidência da companhia postal passou anos nas mãos de membros da base aliada da vez — prática esvaziada após a Lei das Estatais, de 2016, que limitou as indicações partidárias. Foi a partir da investigação de propinas pagas pelos Correios que se descobriu, em 2005, o mensalão, o primeiro grande caso de corrupção petista. O Postalis, fundo de pensão da estatal, também figurou mais de uma vez em escândalos de fraudes. “A Lei das Estatais criou diversos mecanismos para reduzir os abusos do controlador, que é o Estado”, afirma Joelson Silveira, professor de economia da Fundação Getulio Vargas. “Não resolve tudo, mas ajudou muito.”
Outro grande desafio é fechar as contas. De um lado, os Correios trabalham com as tradicionais correspondências, como cartas e boletos, que são monopólio da estatal, mas minguam ano a ano. De outro, as entregas de encomendas dispararam, no embalo da revolução do comércio eletrônico. Nesse campo, contudo, os Correios enfrentam a concorrência acirrada de companhias privadas mais eficientes. Ou seja, o que emergiu como salvação para as receitas virou, ao mesmo tempo, um problema. São grandes varejistas, antigos clientes dos Correios, que passaram a ter as próprias megaoperações de logística, como Mercado Livre, Magazine Luiza e Amazon, além de transportadoras que se consolidaram, como Loggi, Sequoia e Total Express (empresa do Grupo Abril, dono de VEJA).
Todas elas, em algum momento, acabam atuando em parceria com a estatal. “As privadas estão nas regiões mais densas, mas, para chegar a lugares remotos, usam os Correios”, diz o vice-presidente da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm), Rodrigo Bandeira. O que parece ser uma vantagem competitiva é, na verdade, parte do problema. Os Correios são a única empresa com agências nos 5 568 municípios brasileiros, mas a maioria delas é deficitária. É esse ônus da universalização — previsto por lei, inclusive — que ano após ano fere os balanços da empresa. “Ele perde espaço nos grandes centros e vai ficando cada vez mais só com o osso, o que deixa sua operação mais cara”, diz Maurício Lima, sócio-diretor da consultoria em logística ILOS. Em entrevista no ano passado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que empresas que cumprem algum “papel social” não serão privatizadas. Os Correios estariam nessa lista do ministro.
É por isso que parte central do novo plano de negócios passa por diversificar as atividades. “O mercado de entregas é muito competitivo, às vezes estamos bem e às vezes não, e precisamos de uma composição melhor das receitas”, diz o presidente da estatal. Para ter ideia do desafio, as receitas dos Correios com as entregas de comércio eletrônico caíram 9% no ano passado, mesmo com o volume total de pedidos crescendo 7% no país, de acordo com a Abcomm. Agora, um dos projetos em curso é criar um marketplace próprio, com foco em pequenos empreendedores. Também foram firmadas, neste ano, parcerias com a Caixa, o INSS e a seguradora francesa CNP para oferecer seus serviços e produtos nas agências dos Correios. Outro nicho em análise está no agronegócio e na possibilidade de entrar no transporte de cargas, um universo amplo e ainda inexplorado. “Os Correios têm uma capilaridade enorme e, sendo bem gerenciados, podem, sim, ser eficientes e lucrativos”, diz José Roberto Lyra, consultor e conselheiro da Associação Brasileira de Logística. O problema é o governo brasileiro ter capacidade para cumprir essa missão. Caso não tenha, já se sabe quem ficará com a conta.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889