Acesso ao crédito é uma das principais barreiras para inclusão, diz executiva do BID
Em entrevista a VEJA, Judith Morrison destaca o Pix como ferramenta que ajuda a integrar populações excluídas ao sistema financeiro
Na véspera do feriado do Dia da Consciência Negra, Judith Morrison, chefe da Divisão de Gênero e Diversidade do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), falou a VEJA os desafios e avanços na inclusão de populações negras na América Latina. Morrison destacou que, embora questões como o racismo estrutural sejam essenciais no debate sobre a inclusão de negros em cargos de liderança, o fator econômico é, muitas vezes, o maior obstáculo. “Eu vejo isso como uma questão de inclusão econômica”, disse. Segundo ela, o acesso ao crédito é uma das principais barreiras para que essa população consiga progredir social e profissionalmente.
Morrison citou o impacto positivo que a inclusão financeira pode ter, mencionando o Pix no Brasil como um exemplo de como ferramentas digitais podem ajudar a integrar populações historicamente excluídas ao sistema financeiro. “O Pix ajudou muitas pessoas a entrar nesse sistema”, observou, comparando o sucesso do modelo brasileiro com iniciativas semelhantes na África, onde sistemas digitais de pagamento têm sido fundamentais para incluir economicamente grupos marginalizados.
Ela também ressaltou o papel das empresas no avanço da inclusão e diversidade, alertando que um dos grandes desafios é a exigência de fluência em uma segunda língua, especialmente o inglês, tornando-se uma barreira excludente para muitos profissionais negros e de outras minorias, que acabam não tendo as mesmas oportunidades de ascensão.
Para combater essas desigualdades, Morrison destacou o trabalho que o BID tem feito para apoiar a diversidade por meio de venture capital. Um exemplo é o BID LAB, uma iniciativa que busca fomentar a inovação e o empreendedorismo, focando especialmente em grupos como mulheres, afrodescendentes e indígenas, que tradicionalmente não recebem apoio suficiente do capital de risco tradicional. “Estamos promovendo maior diversidade entre gestores de fundos, para que as decisões de investimento reflitam melhor a população da América Latina”, afirmou. Além disso, o BID Invest, braço do banco que colabora diretamente com o setor privado, tem ajudado empresas a entenderem como diversificar suas equipes e expandir sua base de clientes de maneira inclusiva.
O Brasil tem avançado muito pouco em termos de diversidade e inclusão, especialmente quando falamos de líderes negros nas companhias. O que você acredita estar por trás dessa lenta evolução? O Brasil está em um momento de transformação. Nos últimos três anos, vimos um aumento significativo no número de pessoas afrodescendentes concluindo o ensino superior. Isso é um marco importante, pois reflete o impacto das políticas públicas que têm ampliado o acesso à educação. Agora, estamos começando a ver essa massa crítica de novos profissionais ingressar no mercado de trabalho porque os programas de inclusão que foram lançados nos últimos anos estão começando a mostrar resultados. É um processo lento, mas está acontecendo.
Por que muitas empresas ainda não se atentaram para a importância da diversidade e o que elas precisam fazer para mudar essa realidade? Embora o mercado de trabalho brasileiro esteja, de fato, começando a refletir essa diversidade crescente, ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à liderança. Apesar de vários estudos comprovarem as vantagens competitivas de uma liderança diversa, esse progresso ainda não se traduziu plenamente em posições de comando nas empresas. Acredito que diversificar os grupos dentro das empresas, especialmente em diferentes setores, pode ser uma estratégia eficaz.
Poderia me dar exemplos de empresas que adotaram estratégias eficazes? Há cerca de cinco, a Bloomberg no Brasil começou a oferecer aulas de inglês para seus funcionários, com foco em grupos historicamente sub-representados. O que elas descobriram foi surpreendente. Esses programas de inglês, destinados especialmente a mulheres e afro-brasileiros, normalmente levariam entre quatro e cinco anos para alcançar fluência. No entanto, com esses grupos extremamente motivados, os resultados vieram muito mais rápido: em apenas 18 meses, muitos atingiram um nível de fluência considerável. Isso mostra que, quando as empresas incentivam e fornecem oportunidades de qualificação, o retorno pode ser mais rápido e eficaz do que o esperado.
Você considera que a exigência de fluência em um idioma pode funcionar como um fator de exclusão no processo seletivo? Sim, acredito que o critério de exigir um nível quase perfeito ou nativo de inglês acaba se tornando um forte filtro de exclusão. Felizmente, as empresas estão começando a perceber isso. Elas têm desenvolvido programas para mudar essa mentalidade, abrindo mais espaço para uma meritocracia verdadeira, que valorize o mérito real e não apenas a proximidade com um padrão cultural ou econômico restrito.
Quando olhamos para a América Latina, vemos uma população extremamente diversa. No entanto, comparada a economias desenvolvidas, ainda há muito a ser feito para promover inclusão de forma significativa. Essa exclusão é uma característica que se manifesta em toda a região? Sim, a exclusão é uma realidade que afeta toda a região, e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem trabalhado ativamente para incentivar a criação de espaços mais inclusivos e acessíveis. A América Latina é extremamente diversa, e no Brasil, por exemplo, mais de 50% da população é afrodescendente. Uma economia forte precisa ser inclusiva, pois não podemos desperdiçar o enorme talento presente nesses grupos. Essa diversidade traz uma riqueza de habilidades e experiências que só será plenamente aproveitada se as barreiras forem eliminadas e mais oportunidades forem criadas. Portanto, a inclusão não é apenas uma questão de justiça social, mas também um imperativo econômico estratégico.
Como o BID está trabalhando para promover maior diversidade e inclusão na região? O BID tem focado em promover maior diversidade e inclusão na América Latina por meio de iniciativas estratégicas, como a área de venture capital. Uma dessas iniciativas é o BID LAB, que visa expandir e incentivar a inovação, com ênfase em grupos historicamente excluídos, como mulheres, afrodescendentes e indígenas. O objetivo é garantir que esses grupos recebam mais apoio e oportunidades no ecossistema de venture capital, algo que tradicionalmente não ocorre. Além disso, a ideia é promover maior diversidade entre gestores de fundos, para que as decisões de investimento reflitam melhor a população da América Latina. Outro exemplo é o BID Invest, o braço do BID que atua diretamente com o setor privado. Ele colabora com empresas que têm boas ideias e ambições, mas que muitas vezes carecem de conhecimento sobre como colocá-las em prática. O BID Invest ajuda essas empresas a entenderem como diversificar suas equipes e expandir sua base de clientes, oferecendo suporte e orientação sobre a implementação de práticas mais inclusivas e diversificadas.
Quando comparamos o Brasil com outros países, como os Estados Unidos e a Europa, o Brasil ainda está distante de um nível de inclusão mais avançado. O que o Brasil pode aprender com esses países que têm sido mais inclusivos? Eu diria que, neste momento, o Brasil está em um processo de discussões importantes sobre diversidade. E, na minha visão, o Brasil tem avançado em algumas áreas, justamente quando outras partes do mundo estavam mais “fechadas” nesse sentido — digo “fechadas” porque, durante um tempo, o debate sobre raça não estava tão em pauta. Eu diria que o Brasil está avançando de uma maneira muito própria, talvez diferente de outros países. Claro, sempre há mais a ser feito. A grande diferença das iniciativas brasileiras é que muitas empresas estão se voluntariando para fazer parte desses grupos. Ou seja, não é algo imposto a elas. Elas estão criando iniciativas dentro de suas organizações porque acreditam que isso agrega valor.
Qual você considera ser o principal obstáculo para a promoção de lideranças negras? Acredita que isso se deve mais a uma questão educacional ou a políticas públicas? Eu vejo isso como uma questão de inclusão econômica. Estamos falando de acesso ao crédito, por exemplo. O BID realizou um estudo sobre o acesso ao crédito e constatou que pessoas afrodescendentes têm menos acesso, muitas vezes enfrentam negativas ou recebem valores significativamente menores. Esse é um dos pontos críticos que ainda precisam ser abordados com mais eficácia. A educação é um fator importante e, de fato, tem avançado rapidamente, especialmente com algumas políticas que já têm mostrado resultados muito positivos. No entanto, o desafio real acontece depois da universidade.
Você mencionou a questão do crédito, e isso me fez pensar sobre a situação no Brasil, onde ainda existia uma grande parcela da população fora do sistema bancário até recentemente. Em pleno século 21, em um ano em que praticamente todo mundo está no digital, ,o Pix foi uma ferramenta crucial para integrar muitas dessas pessoas ao sistema financeiro. Esse seria um exemplo de inclusão? Sim, esse é um excelente exemplo de inclusão financeira. Além disso, há outros exemplos em países como os da África, onde o estilo de uso do Pix, como uma moeda digital, tem mostrado grande eficácia.
Você mencionou a questão da inteligência artificial, e isso me fez refletir sobre o grande debate atual em torno dessa tecnologia. Há uma preocupação crescente de que a inteligência artificial possa substituir empregos e funções humanas, o que poderia agravar ainda mais as desigualdades sociais. Como você vê essa questão? Eu entendo a preocupação. Há um receio de que a tecnologia possa tirar empregos, até mesmo de pessoas com maior escolaridade e mais qualificadas. Mas, na minha visão, sempre houve essa ameaça de substituição no setor tecnológico. Qualquer avanço pode gerar mudanças nos postos de trabalho. No entanto, acredito que a verdadeira oportunidade da tecnologia, especialmente da inteligência artificial, é de aprimorar o trabalho e torná-lo mais interessante e diversificado. A esperança é que a tecnologia, ao automatizar certas tarefas, permita que os humanos se concentrem em aspectos mais criativos e estratégicos do trabalho, coisas que a máquina não consegue replicar.