A guerra fria tecnológica entre Estados Unidos e China
A disputa em campos como o dos chips deixou de ser apenas um protecionismo comercial e se tornou um elemento central no enfrentamento das duas potências
Dave Huang, vice-presidente de comunicações da Huawei na América Latina, um homem de altura mediana, usava um terno azul-marinho, sem gravata, e o cabelo negro asseado em um corte militar. “Nós precisamos de um mercado livre e com plena competição, sem questões geopolíticas”, disse ele durante encontro com jornalistas na sede da empresa, em Xangai, na China. Chovia torrencialmente do lado de fora, mas o calor não cedia. Uma das líderes mundiais em tecnologia 5G e em smartphones, a companhia chinesa está proibida de fazer negócios com empresas americanas desde 2019. “Os ataques dos Estados Unidos à Huawei demonstram o medo que têm de ficar para trás”, diz Guo Ping, presidente do Conselho de Administração da empresa.
O apelo dos executivos da Huawei tende a ser inócuo. O comércio global sempre foi indissociável da geopolítica. As relações de poder entre países e territórios influenciam e vão continuar influenciando o fluxo de mercadorias e serviços pelas fronteiras. Tentar separar os negócios de uma empresa estratégica como a Huawei da geopolítica é tão impossível quanto esperar que a chuva amenize o calor em época de monções.
A guerra comercial e tecnológica entre Ocidente e China não dá mostras de esfriamento. No segundo trimestre deste ano, os Estados Unidos e alguns países da Europa incluíram 198 organizações chinesas em suas listas de sanções ou de observação, o maior número desde 2021, segundo a consultoria americana Rhodium Group. Com isso, chega a quase 1 300 o total de companhias chinesas que enfrentam restrições nos Estados Unidos, que vão desde a ZTE até a dona da marca TikTok. Duas em cada dez estão listadas em bolsa, o que representa um risco para investidores americanos (veja o gráfico).
Fornecer equipamentos ou serviços para as capacidades militares da Rússia, que está em guerra com a Ucrânia, tem sido a principal justificativa para as sanções a empresas chinesas. Um dos setores mais afetados pela preocupação americana de conter o avanço tecnológico chinês é a indústria de microprocessadores, que servem tanto a equipamentos militares quanto ao desenvolvimento de inteligência artificial (IA) e de produtos de telecomunicações. O governo americano vem atuando em duas frentes na guerra dos chips. De um lado, usa sanções e barreiras comerciais para dificultar o acesso da China a microprocessadores de última geração. De outro lado, o governo de Joe Biden aprovou, no ano passado, um projeto para incentivar o desenvolvimento da indústria de chips dentro dos Estados Unidos.
A corrida dos microprocessadores mostra como a disputa comercial entre Estados Unidos e China passou de uma clássica guerra tarifária de caráter protecionista, com o intuito de “proteger empregos americanos”, durante o governo Trump, para motivações de cunho mais estratégico e de longo prazo, na gestão Biden. Seu desafio é diminuir a dependência em relação à produção chinesa com o menor impacto possível para a economia americana. “Em 2001, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC), os estudiosos debatiam se o país poderia ser reformado, tornando-se mais democrático conforme se engajasse comercialmente com o resto do mundo. Por volta de 2008 já não havia mais dúvidas sobre isso e passou a prevalecer, nos Estados Unidos, a percepção de que a China deveria ser encarada como uma ameaça”, diz Evan Ellis, professor do Instituto de Estudos Estratégicos do Colégio de Guerra do Exército dos Estados Unidos.
A inundação de produtos chineses baratos na primeira década do século XXI foi vantajosa para a economia americana, ajudando a manter a inflação e, consequentemente, os juros em patamares baixos. Estima-se que as trocas comerciais com a China entre 2000 e 2007 elevaram o poder de compra das famílias americanas em 1 500 dólares, em média. Aos poucos, o impacto no mercado de trabalho nos Estados Unidos foi ganhando relevância política e começaram a surgir preocupações em relação a práticas de concorrência desleal por parte da China. Entre estas estão o desrespeito a regras de propriedade intelectual, os subsídios estatais a empresas e a manipulação cambial que favorecia as exportações do país asiático.
As inquietações com o impacto que o avanço tecnológico chinês poderia ter sobre a segurança nacional começaram a ganhar força em 2012, com um relatório do Congresso americano apontando que os equipamentos de telecomunicações chineses poderiam ser usados para sabotar as capacidades militares dos Estados Unidos. Em 2017, uma lei chinesa passou a obrigar as empresas do país a entregar aos serviços de inteligência do regime, sempre que solicitadas, quaisquer informações consideradas de interesse nacional. Esse é um dos motivos pelos quais os americanos temem que empresas de tecnologia chinesas sejam usadas para espionagem. Outro é o fato de Pequim ter intensificado o controle partidário sobre os negócios. “Antes, as empresas privadas eram livres. Hoje, 70% das grandes companhias têm uma célula do Partido Comunista Chinês dentro da sua estrutura, observando e participando de tudo”, diz Roberto Dumas Damas, professor de economia chinesa do Insper.
Por essas e outras, seria simplista afirmar que as sanções e barreiras às empresas chinesas são meramente fruto do ciúme americano com o avanço econômico do rival. Quando anunciou um aumento de 25% para 100% na taxa de importação de carros elétricos da China, recentemente, além de elevar as barreiras tarifárias para aço e painéis solares provenientes do país asiático, Biden não estava apenas protegendo empresas americanas da concorrência chinesa. Seu objetivo era também estratégico, criando obstáculos à consolidação de um monopólio chinês em tecnologias consideradas “verdes”. O poder desmedido que países com grandes reservas de petróleo possuem na atualidade dá uma boa ideia do problema que seria, para os Estados Unidos, depender da China para garantir a energia do futuro.
Em resposta, a China cria suas próprias sanções, enquanto suas empresas buscam se adaptar. As restrições do governo americano forçaram a Huawei a se voltar para o mercado interno e a reforçar sua atuação em países em desenvolvimento. Em 2019, cerca de 40% do faturamento da empresa vinha da China. No ano passado, essa fatia alcançou 50%. O lucro de 12 bilhões de dólares em 2023 já supera o patamar pré-pandemia. O faturamento também está em processo de recuperação. A Huawei passou a apostar mais em desenvolvimento de software, ao mesmo tempo que segue investindo na implantação de uma rede de internet 5.5G em países periféricos, como o Brasil, um mercado estimado em 4 bilhões de dólares. Em 2023, a empresa injetou globalmente 25 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento na área. “Parte do mundo usará a tecnologia da Huawei e parte não”, diz Shaun Collins, presidente da consultoria CCS Insight. A geopolítica da guerra fria tecnológica está se delineando.
Publicado em VEJA, agosto de 2024, edição VEJA Negócios nº 5