99Food volta ao delivery com investimento de R$ 1 bi para desafiar o iFood
O mercado brasileiro de delivery entra em uma nova fase, com aportes importantes e promessas de menor custo para o consumidor

A primeira tentativa ficou pelo caminho. Agora, no entanto, a combinação entre um ambiente regulatório mais previsível, a bagagem acumulada na gestão de um dos principais aplicativos de mobilidade urbana do país e, sobretudo, um caixa reforçado com 1 bilhão de reais reacende a aposta da 99 no competitivo mercado de entrega de refeições. Sob a marca 99Food, a empresa, fundada por brasileiros e controlada desde 2018 pelo grupo chinês DiDi Global, iniciou uma ruidosa operação-piloto em Goiânia, que se tornou o ponto de partida para a retomada dos negócios de delivery de comida no Brasil. O plano é ambicioso: chegar às praças de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte no segundo semestre e cobrir, em no máximo dois anos, 3 300 municípios de médio e pequeno porte. A estratégia se apoia no crescimento expressivo da atividade de levar refeições, remédios e outros produtos aos lares e escritórios, um movimento que mudou a rotina de milhões de brasileiros nos últimos anos.

A despeito da posição dominante do iFood, o mercado brasileiro de delivery se prepara para uma inédita ofensiva de investimentos. Além da 99Food, o Rappi anunciou um aporte de 1,4 bilhão de reais para ampliar sua atuação por aqui, reduzir tarifas e reforçar sua base de restaurantes, farmácias e supermercados. Já a chinesa Meituan, que estreia no Brasil sob a bandeira Keeta, promete investir 5,6 bilhões de reais até o fim do ano. Na China, a empresa foi multada em cerca de 2,5 bilhões de reais por impor exclusividade aos restaurantes parceiros, e agora terá de enfrentar uma fiscalização rigorosa do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para evitar práticas semelhantes em solo brasileiro.
O cenário atual justifica a onda de investimentos. Em 2024, o mercado brasileiro de delivery cresceu 7%, chegando a 21 bilhões de dólares em faturamento. Segundo a empresa de pesquisa Statista Market Forecast, o desempenho deverá ser mantido pelo menos até 2029. Nas contas do mercado, mais de 70% desse bolo pertence ao iFood. O restante é compartilhado por operadoras regionais como a aiqfome, com sede em Maringá, a pede.ai, resultante da fusão entre aplicativos do Espírito Santo e de Pernambuco, a QueroDelivery, de Sergipe, e a MeEntrega, da gaúcha Guaíba, entre outras. Há, ainda, plataformas só de entrega de bebidas, como a Zé Delivery, popular na capital paulista, e a DrinkApp, desenvolvida por alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Nada, porém, que incomode a larga vantagem do iFood. Nem mesmo o Rappi — segundo colocado no ranking nacional do setor — aparece, até agora, no retrovisor do líder com condições de tentar uma ultrapassagem.

A 99 quer mudar esse quadro. Em sua primeira entrevista exclusiva à frente da companhia, o diretor-geral Simeng Wang afirma que a operação foi estruturada para ampliar a competição no setor. Segundo ele, o modelo adotado é mais lucrativo para bares e restaurantes, mais rentável para os entregadores e até 30% mais barato para o consumidor final. Nos escritórios envidraçados da empresa, em São Paulo, a estratégia é chamada internamente de “ganha-ganha-ganha”. A operação brasileira tem papel central na estratégia global do grupo DiDi, controlador da 99: servirá de referência para futuras investidas do gigante chinês em outros países. “O mercado brasileiro é absolutamente estratégico para nós”, diz Wang, um jovem executivo chinês de 38 anos. “Viemos para ficar, crescer e multiplicar o mercado.”

Em Goiânia, escolhida pela 99Food por representar o perfil socioeconômico das cidades médias brasileiras, a investida começou com o mapeamento prévio de restaurantes e entregadores motorizados. Com as parcerias firmadas, o aplicativo 99 passou a exibir uma nova aba dedicada à entrega de refeições, do café da manhã ao jantar, nos diversos estabelecimentos já cadastrados. Ao todo, 4 000 motociclistas estão mobilizados para realizar as entregas, todos uniformizados com jaquetas de couro amarelas e mochilas térmicas estampadas com o emblema preto da 99Food. A reportagem de VEJA NEGÓCIOS acompanhou os entregadores circulando em cortejos visíveis pelas principais avenidas da capital goiana, compondo o que a empresa tem chamado de “onda amarela”. A operação de marketing ostensiva marca a tentativa mais ambiciosa de reviravolta no delivery brasileiro desde a ascensão do iFood, há quase uma década.
O jogo começou a mudar desde que o Cade, há dois anos, impôs limites aos contratos de exclusividade firmados pelo iFood (como a Meituan fez na China até ser coibida), uma medida que visou a reduzir barreiras à entrada de concorrentes. Antes disso, as regras vigentes restringiam o acesso de novos concorrentes ao mercado, inviabilizando os planos de expansão tanto da 99Food quanto do Uber Eats. As duas plataformas encerraram suas operações praticamente ao mesmo tempo, após três anos de tentativas frustradas de ganhar escala. “Na prática, o iFood opera como um monopólio, o que prejudica todo o setor”, afirma Leonel Paim, dono das cantinas Osteria Generale e Via Castelli, em São Paulo, e vice-presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Segundo ele, a plataforma líder chega a cobrar comissões de até 27% nos contratos iniciais, além de taxas que chegam a 20 reais por entrega. “Isso obriga os restaurantes a aumentar os preços da refeição por delivery em pelo menos 20%. É ruim para nós, que não conseguimos repassar todo o custo, e também para o cliente, que paga bem mais do que desembolsaria no salão.”
O aporte de 1 bilhão de reais que a 99Food começa a fazer pretende romper o modelo atual de remessa de comida no Brasil. Para atrair os restaurantes, a empresa tem oferecido condições bastante vantajosas. “A exigência da 99Food é que a refeição tenha o mesmo preço do salão no delivery. Para viabilizar isso, o app não vai cobrar nenhuma comissão pelos próximos dois anos”, afirma Tales Araújo, sócio da rede de restaurantes Caserato, com cinco unidades em Goiânia. “A única cobrança será a taxa de entrega, de cerca de 1 real por quilômetro rodado, o que é bastante razoável.” Com as novas condições, Araújo projeta um aumento de até 30% no volume de pedidos realizados pela plataforma.

Ponto de encontro da sociedade goianiense, o Caserato tem entre seus clientes artistas famosos do universo da canção sertaneja, que moram nos condomínios elegantes da cidade. “Para a gente que vive na estrada, o delivery é uma ferramenta cada vez mais indispensável”, diz a cantora Maiara, da dupla formada com a irmã Maraisa. “Quando estamos em Goiânia, o pedido por aplicativo é cômodo porque não prende a gente na cozinha e aumenta as possibilidades de comer um prato gostoso.”

A Abrasel estima que ao menos 70 milhões de brasileiros já tenham aplicativos de entrega de refeições instalados em seus celulares, mas o número não para de crescer. No topo desse mercado, o iFood recebe cerca de 120 milhões de pedidos por mês. Já a 99Food aposta na base de 55 milhões de usuários cadastrados no aplicativo da 99 (de transporte) como atalho para conquistar clientes com rapidez. Em resposta aos movimentos dos concorrentes, o iFood anunciou, em maio, uma parceria estratégica com o Uber. Os usuários do aplicativo de transporte poderão fazer pedidos de comida e produtos de farmácia, enquanto os clientes do iFood também terão acesso a corridas. O lançamento da plataforma integrada está previsto para o segundo semestre, a mesma janela de estreia do Keeta, o aplicativo da chinesa Meituan.

A movimentação no Brasil reflete uma tendência observada em diversos mercados internacionais, com o serviço de entrega se consolidando como parte essencial da rotina urbana — e também como terreno fértil para disputas bilionárias. “O crescimento do delivery é um fenômeno global”, diz Cintia Goldenberg, sócia da consultoria Ghesta, especializada em gerenciamento de bares e restaurantes. Em fevereiro, a holandesa Prosus, controladora do iFood e presidida pelo brasileiro Fabricio Bloisi, fechou por 4,3 bilhões de dólares a compra da também holandesa Just Eat Takeaway, líder do mercado europeu, com atuação em catorze países. Mas nem tudo são flores. No ano passado, a mesma Just Eat se viu pressionada a vender o controle da americana Grubhub, por 650 milhões de dólares, em razão de mudanças em políticas tarifárias locais. O problema é que, três anos antes, havia pagado 7,3 bilhões de dólares pela operação. O prejuízo, portanto, foi superior a 90%. “O setor sofre forte influência de legislações regionais, que podem fazer vencedores e perdedores”, afirma a consultora Goldenberg.

Na ponta mais visível, e muitas vezes mais frágil desse ecossistema, os motoqueiros estão subindo de patamar econômico graças, outra vez, à entrada em cena da concorrência. A 99Food promete a garantia mínima de 250 reais em diárias aos que realizarem uma bem-sucedida combinação entre transporte de passageiros e entrega de refeições, só possível nos municípios em que a legislação municipal permite o serviço de mototáxi. A empresa assegura que cada motociclista só poderá estar conectado ao app por, no máximo, doze horas consecutivas, retornando somente doze horas depois. Em tese, os limites irão garantir um período compulsório de descanso ao entregador. Em São Paulo, os motoboys ligados ao iFood anunciaram, em março passado, uma greve por melhores condições de trabalho. A empresa respondeu com um reajuste no valor pago pelo quilômetro percorrido e um aumento nos prêmios de seguro contra acidentes.
A plataforma diz que está em busca de melhorias. “Sempre avançamos em direção ao conforto dos nossos parceiros”, afirma Rafael Corrêa, líder de comunicação do iFood. Ele saúda a agitação do setor: “A entrada de novos concorrentes reforça o potencial do mercado brasileiro, ao mesmo tempo desafiador e repleto de oportunidades. Isso é bom, não somos monopolistas”. Na hora da fome, o hambúrguer é o campeão brasileiro do delivery, com 212 milhões de unidades solicitadas no ano passado via iFood. Com a chegada de novos concorrentes, o banquete do delivery tende a ficar mais farto — e mais barato para os consumidores também.
Publicado em VEJA, junho de 2025, edição VEJA Negócios nº 15