Espionagem e grampos marcam disputa entre J&F e Paper Excellence
Maior embate empresarial do país envolve nomes como Joesley Batista, Frederick Wassef e Eduardo Bolsonaro
Joesley Batista, acionista do grupo J&F, holding que congrega o megafrigorífico JBS e outras companhias, entrou para a história como o homem que gravou inadvertidamente uma conversa com um presidente — no caso, Michel Temer, em 2017, no episódio lhe rendeu a alcunha de “grampeador da República”. Pois, agora, sua empresa, comandada por José Antonio Batista Costa, afirma ter provas cabais de que ela própria foi alvo de interceptações ilegais. O caso envolve um dos maiores litígios empresariais do país, a disputa pela Eldorado Celulose, travada entre a J&F e a indonésia Paper Excellence, sócias no negócio. O processo, de modalidade arbitral, corre na Câmara de Comércio Internacional (ICC) e deverá ter um desfecho até o fim deste mês. Até lá, contudo, reverberam na Justiça acusações de parte a parte: de agressões verbais em reuniões do Conselho a ameaças de violência física.
A denúncia de espionagem, assim como as demais, caminhava para se tornar apenas um detalhe folclórico na virulenta disputa, um processo de 15 bilhões de reais. Isso até um áudio de um executivo da Paper Excellence trazer o imbróglio para a cena aberta. Na gravação, Josmar Verillo, homem de confiança do empresário indonésio Jackson Wijaya no Brasil, afirma ter obtido acesso a um trecho do acordo de leniência entre a J&F e o Ministério Público Federal antes de ser divulgado pelo órgão. “O Ministério Público tem de tornar público o quarto aditamento. Esse documento eu vi e qualquer empresa do grupo que fizer projeto social será computado (sic) para pagar os 2,3 bilhões de reais”, afirma Verillo no áudio a respeito da multa imposta pelo MPF à empresa. “Ele joga nas costas do acionista 60% da multa. É um puta (sic) golpe”, conclui o executivo. Na denúncia da espionagem, a J&F garante que Verillo só poderia ter acesso ao documento de duas formas: por vazamento no MPF ou por meio do hackeamento de seus executivos, detectado alguns meses antes.
Verillo é conhecido no meio político-empresarial. Foi ele quem articulou as visitas do deputado federal Eduardo Bolsonaro e o do vice-presidente, Hamilton Mourão, à sede da Asia Pulp and Paper, proprietária da Paper Excellence, em Jacarta, na Indonésia. Lá, eles se encontraram com Jackson Wijaya, em datas diferentes, ao longo do ano passado. Nas duas ocasiões, o empresário entregou um grande cheque a cada um, nos moldes dos programas de auditório popularescos. O primeiro, a Mourão, foi de 27 bilhões de reais em promessas de investimentos no Brasil. O segundo, ainda maior, de 31 bilhões de reais, foi endereçado ao filho zero três, com a mesma finalidade do anterior. Puro marketing, pois nada saiu do papel até agora, até porque todo o investimento prometido depende da vitória da Paper Excellence sobre a J&F na arbitragem.
Os advogados da multinacional indonésia justificam a declaração de Verillo a partir da afirmativa de que o documento, até então considerado sigiloso pela J&F, era, na verdade, público. Os termos usados por Verillo, no entanto, denotam o contrário. A defesa diz ainda que o documento estava disponível já no dia 4 de maio, enquanto a equipe da J&F rebate que isso aconteceu no dia 14 de maio. Parece uma discussão menor, mas tornou-se um argumento crucial no processo bilionário. A J&F está convencida de que foi alvo de espionagem cibernética encomendada pela rival e que isso prejudicou sua estratégia de argumentação na arbitragem. Outro episódio que sustenta a tese da J&F envolve um programador que se apresenta como hacker e que procurou a empresa para denunciar um grande vazamento de informações. Especialista em programação, Filipe Balestra contatou os executivos da JBS neste ano e apontou um vazamento de e-mails corporativos da companhia. Sua proposta era vender serviços de “contrainteligência” para evitar novas falhas do tipo. Ele contou que foi avisado do vazamento por um colega, que morreu em uma situação suspeita. Se Balestra foi o autor do golpe, não se sabe. O que se provou foi que os e-mails do grupo, além dos de advogados e consultores envolvidos na arbitragem, de fato, foram desviados para uma caixa de mensagens em um servidor obscuro baseado na Suíça. O arremate na tese de espionagem da J&F diz respeito a uma denúncia feita pelo escritório de advocacia Mattos Filho à câmara arbitral. Um dos sócios da banca que defende a Paper Excellence entregou aos árbitros uma carta anônima que teria recebido e que continha e-mails de advogados da J&F interceptados ilegalmente.
O litígio entre J&F e Paper Excellence foi originado em uma disputa pelo controle da companhia. A empresa indonésia não conseguiu cumprir as exigências do contrato de sociedade para fazer a aquisição da parte da J&F na Eldorado até 4 de setembro de 2018. Para conseguir avançar além da participação de 49% que tem na Eldorado, a companhia asiática deveria liberar as garantias dadas pela família Batista no início. Foi nesse ponto em que o acordo degringolou. A J&F argumenta que os indonésios não liberavam as garantias, o que inviabilizou a compra no prazo estabelecido. Os rivais, por sua vez, argumentam que a empresa brasileira dificultou como pôde o processo de liberação e, com isso, a aquisição.
Quando o contrato de sociedade na Eldorado foi firmado, em 2017, os controladores da J&F enfrentavam forte pressão financeira decorrente das delações e acordos de leniência firmados com a Lava-Jato pelos irmãos Joesley e Wesley Batista. Passada a tempestade, o cenário hoje é outro. O dólar disparou e o preço da celulose no mercado internacional também. A Paper Excellence acusa a família de evitar a venda da companhia pelo valor previsto para a transação. E para isso usa uma petição formulada pelos advogados de defesa da J&F no ano passado, a qual aponta que “a J&F disse que entende ser razoável conversar, para uma transação, em valores na ordem de 10 bilhões de reais”. O montante restante a ser pago, naquele momento, era de 4,4 bilhões de reais — valor que estava depositado em juízo em uma conta no BTG Pactual.
Com a judicialização do acordo, a disputa restrita aos bastidores do mundo dos negócios ganhou tons policialescos. O conselheiro da Eldorado Celulose, Francisco de Assis, vinculado à família Batista, declarou ter sido vítima de ameaças feitas por telefone em denúncia protocolada na Delegacia de Repressão a Extorsão da Polícia Civil, em São Paulo. A petição é assinada pela advogada Ana Flávia Rigamonti, ex-funcionária do escritório de advocacia Wassef & Sonnenburg, pertencente ao advogado Frederick Wassef, ligado à família Bolsonaro. Esse, aliás, é um dos casos que explicam os pagamentos de 9,6 milhões de reais feitos pela empresa ao amigo do presidente. O pedido de investigação relata o contexto da disputa e mostra que, a partir dela, a família Batista passou a “sofrer todo tipo de coação e pressão através de inúmeros mecanismos ardilosos”.
Disputas acirradas são comuns no mundo dos negócios e eventualmente derrapam para práticas ilegais. No exterior, brigas bilionárias — e com práticas escusas — vão de pendengas entre a General Motors e a Volkswagen a brigas entre corporações e países, como o processo em que o Google acusou a China de hackear seu serviço de e-mail. A troca de acusações entre J&F e Paper Excellence surge em um contexto delicado para ambas. Decisões de câmaras arbitrais raramente são revertidas. “Falam até que é a maior arbitragem em trâmite na pandemia”, diz Vivien Lys, professora de arbitragem e mediação da FGV. “É um caso que terá um peso importante, pois se as denúncias de espionagem estiverem na arbitragem, caberá aos árbitros decidir se elas pesarão no julgamento.” Seja qual for a decisão, o embate em torno da Eldorado Celulose já entrou para a história dos grandes litígios empresariais brasileiros.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705