O inevitável mal-estar da política
Narrativas radicais e falsas expectativas geram esse sentimento
A política causa mal-estar. Por isso, para muitos, ela é desprezível. O mal-estar na política se confirma pela elevada desaprovação dos políticos entre a população, o que tende a se amplificar com a divulgação de narrativas antipolíticas por parte de quem não está no poder.
Identificamos, pelo menos, dois polos na questão: o cidadão insatisfeito e o oposicionista que deseja o lugar de quem está no poder. Entre os cidadãos, as origens desse mal-estar relacionam-se a três aspectos fundamentais: as elevadas expectativas que nutrimos em nossa vida; a incapacidade da sociedade e do Estado de atender a elas; e a transferência a outros de nossa responsabilidade por nossas escolhas e eventuais fracassos.
Nos dias de hoje, uma elevada expectativa é posta como fato consumado já ao nascermos, pois a Constituição nos assegura diversos direitos. Por exemplo, direito à educação, à saúde, ao trabalho, à Previdência Social, ao lazer, à segurança, à proteção à maternidade, à infância e a desamparados. Contudo a maioria desses direitos não é efetivamente garantida pelo Estado.
Em sua mordaz e pertinente crítica à Carta Magna de 1988, o economista Roberto Campos menciona que “a palavra ‘produtividade’ só aparece uma vez no texto constitucional; as palavras ‘usuário’ e ‘eficiência’ figuram duas vezes; fala-se em garantias 44 vezes e, em direitos, 76 vezes, enquanto a palavra “deveres” é mencionada apenas quatro vezes.”
“A maioria dos direitos assegurados pela Constituição não é garantida pelo Estado”
Assim, cria-se uma expectativa impossível de ser alcançada, já que a Constituição estabeleceu metas sem a devida preocupação de indicar os meios para que a sociedade se torne suficientemente produtiva a ponto de poder financiar o Welfare State imaginado. O resultado é a frustração.
O mal-estar também decorre da tendência do ser humano de terceirizar a responsabilidade diante do próprio fracasso ou das próprias pretensões não concretizadas. Sem responsabilidades sobre nossas expectativas, é cômodo transferir a outros a culpa por eventuais derrotas. Uma sociedade injusta e desigual como a nossa transforma essa tendência humana em algo quase inevitável. Como disse Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
Nesse ponto, cabe uma analogia com o questionamento de Freud sobre a cultura: seríamos mais felizes se desistíssemos da política e retornássemos às condições primitivas? Creio que não. Primeiro, porque, mesmo que a humanidade recomeçasse do zero, a política faria parte dessa reconstrução. A política existiria em qualquer estágio da humanidade por causa das relações que se estabelecem entre famílias, clãs, tribos e nações. Segundo, porque ainda não foi inventado nada melhor que o processo político para mediar conflitos, criar instituições e reduzir os riscos inerentes à convivência entre seres humanos.
A inevitabilidade da política nos leva à conclusão de que o mal-estar causado por ela também é inevitável, já que resta impraticável atender às expectativas formalizadas na Constituição em um ambiente de elevada desigualdade como o nosso. De acordo com o filósofo Mario Sergio Cortella, somos “seres de insatisfação”. Sobretudo em meio a narrativas antipolíticas e radicais alimentadas por quem deseja ou quer conservar o poder. De nossa parte, como seres de insatisfação, continuaremos a desejar muito e a nos responsabilizar pouco por nossas escolhas e seus resultados.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775