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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

Por Paulo Furquim de Azevedo
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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O ‘efeito bumerangue’ das normas jurídicas

A lei tem sempre algum objetivo específico, um fim, algo na sociedade que os legisladores quiseram mudar ao criá-la. Mas resultado nem sempre é o almejado

Por Luciana Yeung
Atualizado em 15 Maio 2024, 19h55 - Publicado em 15 Maio 2024, 19h54

Aprendemos, na física do Ensino Médio, que para cada ação existe uma força de reação, na mesma intensidade, mas em direção inversa. Assim como no mundo físico, no mundo social também parece existir uma reação para cada força de ação que é executada. Porém, como os seres humanos que compõem a sociedade são entes racionais – que tomam decisões por si sós –, diferentemente do primeiro caso, no mundo social, pode ser mais difícil prever as reações às ações postas. A Economia como ciência existe, em grande parte, para ajudar nisto: prever o comportamento das pessoas em sua vida social e suas reações às ações de outras pessoas ou organizações. É isso que discute o famoso princípio fundamental da Economia, “as pessoas reagem a incentivos”. 

Contudo, poucos não-economistas sabem disso (continuam achando que economistas só estudam questões financeiras e monetárias… – mas eu já insisti muito neste tema em colunas passadas, vou tentar não ser tão repetitiva…). Poucos conhecem as diversas áreas da Economia dedicadas a prever as consequências das pessoas reagindo a incentivos, inclusive e sobretudo a Análise Econômica do Direito (ou o law and economics). Essa, dedica-se, em grande parte, a prever como agentes econômicos e sociais reagem a incentivos que são colocados a eles – no caso, incentivos na forma de leis, constituições, decisões judiciais, regras contratuais etc. É por isso que, muitas vezes, economistas podem ser mais capazes de prever quais serão os impactos de leis e decisões judiciais que são criadas. 

Por definição, leis e demais normas jurídicas (como decisões judiciais) são criadas para criar algum impacto na sociedade. A lei tem sempre algum objetivo específico, um fim, algo na sociedade que os legisladores quiseram mudar ao criá-la. Mas o problema é que nem sempre o resultado é o almejado. Muitas vezes o contrário decorre da imposição da lei – um fenômeno que, de maneira jocosa, denomino de “efeito bumerangue” (em alusão ao instrumento australiano, que o jogador arremessa para muito longe, mas que volta a ele de maneira rápida e até violenta). Assim como o bumerangue, isso pode ser muito perigoso. Surpreendentemente, em nosso país, “bumerangues jurídicos” são criados quase todos os dias: leis e toda sorte de normas jurídicas que acabam tendo efeito contrário “ao esperado”. 

Por que isso ocorre? Não é somente por causa das “leis que não pegam” (também tema de texto passado nesta coluna), pois essas seriam aquelas que não geram efeito nenhum. Leis que geram “efeito bumerangue” são aquelas que criam impactos, sim, mas em direção exatamente inversa ao que se objetivava. E elas ocorrem porque os juristas, legisladores e/ou decisores de políticas públicas, mesmo que dotados de muito boas intenções no momento da formulação da norma jurídica, foram incapazes de prever a reação das pessoas a elas, ou simplesmente, não se deram ao trabalho de tentar prevê-las.

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E o Direito brasileiro arremessa bumerangues todos os dias, aos montes. Cito dois casos clássicos. O primeiro, criado pelo Poder Legislativo em 2015, com a PEC (ou melhor, EC) das Domésticas. A ideia era bastante nobre: garantir às empregadas e empregados domésticos o mesmo rol de direitos e benefícios trabalhistas que todos os demais trabalhadores de carteira assinada possuem – ou seja, beneficiar (ou proteger) essa classe de trabalhadoras. Mas, tão logo ocorreu a sua promulgação, o IBGE já divulgava dados oficiais mostrando a redução da contratação de trabalhadoras dessa categoria. Mais de 10 anos depois (2023), em artigo no site “comemorando” o grande feito, o próprio Senado Federal reconhecia que havia ainda um “desafio” para ter mais carteiras assinadas para trabalhadoras(res) domésticas. Era claro que isso iria acontecer, porque quando criaram a Emenda Constitucional só “fingiram” esquecer que no Brasil existe um grande mercado de diaristas e faxineiras informais (sem carteira assinada). Em Economia diríamos que essas oferecem serviço quase que perfeitamente substituto ao das domésticas: se a contratação de uma se tornar mais exigente, a demanda correrá para a outra. Quem acabou sendo prejudicado? A própria classe de empregadas domésticas formais que tanto se queria beneficiar inicialmente, ou o reduzido grupo delas que continua existindo.

O segundo exemplo veio do Judiciário, em um caso de quebra de contratos agrícolas. Em um ano em que ocorreu um grande choque com substancial elevação no preço internacional da soja, plantadores entraram com liminares na Justiça para não ter de cumprir com os preços pré-pactuados com traders e outras grandes companhias compradoras dos grãos. A Justiça de primeira e segunda instâncias de diversos tribunais do país concedeu as liminares baseada no argumento da “função social do contrato” (plantadores “hipossuficientes” teriam onerosidade excessiva caso fossem obrigadas a vender pelo preço previamente acordado com as – usualmente – grandes compradoras multinacionais). Resultado disso: no ano seguinte, os estados onde houve mais quebras contratuais protegidas pelo Judiciário viram a quantidade de contratos cair, os contratos que continuaram sendo firmados foram muito mais exigentes com os plantadores, porque as compradoras agora queriam se certificar que não mais teriam o problema do ano anterior – ou seja, os produtores foram os mais prejudicados já na safra seguinte. Em um estudo acadêmico dedicado a esse tema, Cristiane Rezende e Décio Zylbersztajn afirmam: “O conceito de função social do contrato está associado à elevação da instabilidade [e insegurança jurídica]. Decorreram maiores custos de transação, bem como a adoção de sanções econômicas por parte dos agentes privados” (2011). É o bumerangue voltando com a força toda.

Ronald Coase já dizia: as decisões judiciais e as normas jurídicas impactam a economia. Só talvez não na maneira como os juristas supõem impactar. Para evitar o “efeito bumerangue” é preciso entender e saber prever efetivamente seus resultados. A análise econômica e uma boa dose de análise empírica, de dados reais do mundo, ajudam nessa hora.

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