Nós e nossos hermanos
Se compartilhássemos mais conhecimento com nossos vizinhos, nossos países provavelmente encontrariam soluções para seus problemas de maneira mais rápida
Dias atrás, estive pela segunda vez na maior cidade do Equador, Guayaquil, no Congresso da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Além de equatorianos e brasileiros, o congresso trouxe peruanos, colombianos, chilenos, argentinos e mexicanos. Por razões pessoais, posso dizer que conheço relativamente bem esses países – pelo menos mais do que a média dos brasileiros, que é baixa. Brasileiros, no geral (com exceções óbvias) não se interessam pelos demais países da América Latina (lembro-me da época em que era coordenadora de curso, e nossas universidades parceiras da LatAm raramente conseguiam atrair os alunos daqui). Mais ainda, nós brasileiros não gostamos de ser chamados de “latinos”, muitas vezes considerando-nos “seres à parte” na América do Sul. Até pouco tempo atrás, eu mesma havia me interessado poucas vezes em viajar a turismo para algum país vizinho. Como acadêmica, então… só tinha olhos para Estados Unidos, Europa e, mais recentemente, um pouco da Ásia – tal qual 99,9% de meus colegas economistas.
Mas, por questões pessoais (e conjugais), as coisas mudaram um tanto para mim. E, quando comecei a frequentar os congressos latino-americanos, percebi o quão errado isso é. Claro que não podemos dizer o que é certo ou errado no interesse das pessoas. Mas, em termos acadêmicos, e especificamente nas ciências sociais, fazemos uma grande besteira ao ignorar a discussão que ocorre na academia latino-americana. Talvez na pesquisa tecnológica de ponta, na engenharia, na medicina e afins possa fazer sentido mirar só os países ricos (“talvez” porque falo totalmente por “achismo”). Mas nas ciências sociais é imprescindível que nós dialoguemos mais com os estudiosos, aplicadores e formuladores de políticas públicas latino-americanos.
A ciência, como todos já sabem, nunca reinventa a roda, pelo contrário, os passos são incrementais, cada um coloca um tijolo no grande muro do saber científico. Ou, usando outra analogia, estamos sempre galgando em ombros de gigantes para ver mais longe. E o que se faz em termos de conhecimento de ciências sociais e humanas no restante da América Latina, pelo menos em termos de questões aplicadas, são identicamente os mesmos problemas que enfrentamos no Brasil há décadas. Ouso dizer que são problemas muito mais “familiares” do que os problemas europeus e americanos, que estão em estágios de desenvolvimento econômico, social e político muito diferentes dos nossos (também posso comprovar isso depois de ter passado seis meses visitando a Alemanha como pesquisadora).
Só para dar exemplos do Congresso de Direito e Economia no Equador, tudo começou quando a coordenadora do curso de Direito contrapôs o foco nos direitos fundamentais com os objetivos econômicos. Garantir os direitos humanos, a “dignidade da pessoa humana” ou garantir o direito ao empreendedorismo? – perguntava ela. (Ou é preciso mesmo fazer uma escolha entre os dois?)
Algumas sessões seguintes, outro pesquisador equatoriano perguntava como garantir a exploração econômica do petróleo (uma das maiores riquezas de seu país) e da Amazônia, respeitando-se a sustentabilidade ambiental no ecossistema?
No dia seguinte, um pesquisador peruano – numa apresentação leve e divertida de assistir, mesmo para não acadêmicos – mostrou como uma das minirreformas tributárias em seu país, com a justificativa de reduzir a informalidade (que chega a quase 80% da população trabalhadora), acabou por piorar ainda mais a regressividade, ou seja, prejudicando ainda mais os pobres, com consequente e potencial aumento da própria informalidade. Qualquer semelhança não é mera coincidência!
Finalmente (e só para finalizar meu artigo), um professor de Direito Econômico da Universidade do Chile contou, em 20 minutos, 60 anos de história econômica recente de seu país. Em resumo, um vaivém entre um liberalismo que no extremo chegou ao estilo Chicago (que muitos cunham de “desumano”) e um intervencionismo estatal nos anos recentes que culminou com as fortes manifestações vistas poucos anos atrás. A pergunta do meu colega chileno era clara: qual é o caminho do equilíbrio?
Se soubéssemos ter um pouco de paciência para ouvir o espanhol de nossos vizinhos, mas também um pouco mais de autoconfiança para lembrar que temos, sim, lições a compartilhar com nossos hermanos, nossos países provavelmente encontrariam soluções para seus problemas de maneira mais rápida, reforçando os aprendizados mutuamente. Honestamente, sentada no auditório da universidade lá em Guayaquil, senti como se estivesse assistindo a um congresso totalmente brasileiro. Nem o discurso, nem os temas era surpreendentes para mim. Mas, claramente, com as trocas, as conclusões seriam mais objetivas, o “ah-ha!” poderia chegar mais rápido. Na apresentação sobre a reforma tributária peruana, não pude deixar de prever o que pode dar certo e dar errado na nossa própria reforma iminente no Brasil. Já na apresentação sobre os planos econômicos chilenos pensei com meus botões: “Os heterodoxos deles avançaram mais do que os nossos…”.
Luciana Yeung é Professora Associada do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora (juntamente com Bradson Camelo) de “Introdução à Análise Econômica do Direito” e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de artigos científicos e aplicados e capítulos de livro, todos na área do Direito & Economia.