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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

Por Paulo Furquim de Azevedo Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem acessível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung
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“A Maior Justiça do Mundo”: estaria Coase impressionado?

Números superlativos do judiciário brasileiro não indicam uma maior acessibilidade pelo grande público

Por Luciana Yeung *
Atualizado em 9 Maio 2024, 11h31 - Publicado em 7 mar 2024, 14h27

Ao final do ano de 2022, existiam 81,4 milhões de ações judiciais nos tribunais brasileiros; ações que ingressaram naquele ano foram 31,5 milhões, crescimento de cerca de 10% com relação ao ano anterior.  Para manter tudo isso, claro, é preciso uma grande estrutura: o Poder Judiciário, de acordo com informação de 2019 do Conselho Nacional de Justiça, tem despesas que correspondem a 1,5% do produto interno bruto. Entre os países mais ricos do mundo, no grupo da OCDE, Israel é aquele com o maior peso do Judiciário, com 0,8%.

Os indicadores comparativos da litigiosidade são igualmente impressionantes. Em 2013, dois autores americanos Mark Rasmeyer, da Universidade Harvard, e Eric Rasmusen, da Universidade de Indiana, mediram o número de processos por 100 000 habitantes em diversos países e encontraram os seguintes números: 5 806 para os Estados Unidos, 3 681 para a Inglaterra, 1 768 para o Japão, entre outros. No mesmo sentido, Wollschlager (1998) mostrou que, na Europa, o país mais litigioso, a Alemanha, tinha 12 300 casos, seguido pela Suécia, com 11 120. Se os dados para aqueles países continuarem mais ou menos válidos, o Brasil certamente estaria à frente de todos, sendo o incontestável número 1 em termos de processos per capita. Como uma população de 203 milhões de pessoas em 2022, o número de ações judiciais a cada 100.000 habitantes no Brasil foi de 40 078, mais de três vezes o dado alemão. Considerando somente os casos novos, seriam 15 509, ainda à frente da Alemanha. 

Não deveríamos nos orgulhar desses números, já que poderiam revelar que a Justiça brasileira é mais acessível à sua população do que as de outros países? A resposta é duplamente negativa. Primeiro, tribunais abarrotados de processos tornam o trabalho dos magistrados humanamente impossível, mesmo que eles tenham grandes equipes de apoio. Isso gera o que alguns chamam de “Tragédia do Judiciário” (Gico, 2014): a exaustão dos serviços judiciais, frustrando um atendimento eficaz. Uma das consequências mais nefastas disso é a baixa eficiência judicial. O próprio CNJ mostra que a duração média de um processo é de 2 anos e 7 meses na Justiça comum, e 2 anos na Justiça Trabalhista – mas na verdade, até a baixa do processo (conclusão formal e efetiva do processo), a demora é de mais de 4 anos. Isso para casos “comuns”, que não acabam em tribunais superiores, por exemplo. 

Igualmente, os grandes números na Justiça brasileira não indicam uma maior acessibilidade pelo grande público, porque há evidências de que esse acesso à Justiça é fortemente regressivo no nosso país: empresas e pessoas de renda acima da média acessam de maneira desproporcionalmente maior do que as pessoas físicas e jurídicas com renda abaixo da média (certamente teremos oportunidade no futuro para discutir mais sobre esta questão). No fim das contas, temos um judiciário caro (caríssimo), ineficiente e acessado pelos mais ricos. 

Por que há tantas ações judiciais no país? Muitos dirão que se trata de uma “cultura litigante” (ou algum outro tipo de “cultura”). Economistas institucionalistas (aqueles que estudam o Direito por exemplo) não se deixam convencer pela tese do fatalismo e determinismo cultural (vide Acemoglu e Robinson, 2012). Preferimos entender que resultados como esses são gerados por incentivos fornecidos aos atores sociais que sabem o que querem (“Indivíduos racionais reagem aos incentivos”, G. Mankiw, 2013). Incentivos pela economia tradicional são preços, custos, lucros etc. Mas, para estudiosos do Direito, incentivos são as regras colocadas de maneira direta ou indireta, explícita e implícita. E as regras atualmente determinam que, para os escolarizados, os informados e os com renda acima da média, é muito barato acessar o Judiciário. Ainda, as regras colocadas expõem o Judiciário como a única instituição com possibilidade e poder de resolver conflitos na sociedade. 

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O que Ronald Coase, o economista que homenageamos nesta coluna semanal, pensaria e diria sobre isso tudo? Sendo o primeiro economista na história a pensar profundamente sobre os impactos do Judiciário na economia, ele disse que, se as partes em conflito pudessem – de alguma maneira – negociar sem a interferência judicial (ou de qualquer ordem estatal), o resultado que alcançariam seria certamente o melhor de todos, aquele que geraria o máximo de ganho para as partes envolvidas. Mas, caso isso não possa acontecer, caso haja incentivos para que as partes não cheguem a acordos cooperativos, com a interferência da Justiça o resultado pode ser pior e não desejado em termos econômicos. Esse é o conteúdo do famoso Teorema de Coase. Melhor do que o teorema foram intepretações de autores subsequentes. Meus favoritos são dois outros formulados por Robert Cooter e Thomas Ulen (2004): pelo Teorema Normativo de Coase, a lei deveria sempre incentivar a negociação privada cooperativa, sem a interferência do Judiciário (ou qualquer outro poder estatal). O motivo seria exatamente o exposto acima: para a garantia da maximização dos ganhos. Já pelo Teorema Normativo de Hobbes, caso as partes em conflito não consigam efetivamente chegar a um acordo cooperativo privado, a Justiça deveria decidir pelo resultado que minimizaria os danos dada a impossibilidade de negociação privada, ou seja, o resultado que seria alcançado caso hipoteticamente as partes tivessem conseguido negociar. 

Pode-se ver que, de acordo com Coase e seus intérpretes mais fiéis, não há nada de sublime na atuação do Judiciário em situações de conflito. Pelo contrário, o ideal seria criar, sempre que possível, mecanismos para as negociações cooperativas – por exemplo, mediações, conciliações e instrumentos afins, que sejam eficazes na pacificação e autocomposição. Para eles, e sobretudo para Coase, ter um Judiciário gigantesco, com recordes mundiais de litigância, não é motivo algum para admiração ou orgulho, nem representa ganhos para a sociedade. Muito pelo contrário. 

* Luciana Yeung é professora associada do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economic, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora (juntamente com Bradson Camelo) de “Introdução à Análise Econômica do Direito” e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de artigos científicos e aplicados e capítulos de livro, todos na área do Direito & Economia. 

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Referências bibliográficas

Acemoglu, Daron & Robinson, James (2012). Why Nations Fail – The Origins of Power, Prosperity, and Poverty. New York: Crown Business.

Cooter, Robert & Ulen, Thomas (2004). Law & Economics. 4th ed. Pearson Education Inc.

Gico Jr, Ivo Teixeira (2014). A tragédia do Judiciário. Revista de Direito Administrativo, v. 267, p. 163-198.

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Mankiw, N. Gregory (2013). Princípios de microeconomia. São Paulo: Cengage Learning. 

Ramseyer, J. Mark; Rasmusen, Eric B. (2013) “Are Americans more litigious? Some quantitative evidence”. The American Illness: Essays on the Rule of Law. New Haven: Yale University Press, v. 69, p. 80.

Wollschla¨gen, Christian (1998) “Exploring Global Landscapes of Litigation Rates”. In Soziologie des Rechts: Fetschrift fu¨r Erhard Blankenberg zum 60 Geburstag, pp.577-82.

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