O dia em que estive no bunker de María Corina Machado
A ganhadora do Prêmio Nobel da Paz deste ano já defendeu que Maduro pudesse ser destituído pela força

A primeira vez que entrevistei a venezuelana María Corina Machado, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2025, foi há 20 anos, mais precisamente em dezembro de 2005. Na ocasião, ela compunha o quadro de diretores da Súmate, uma ONG dedicada a defender eleições livres e justas em meio à escalada autoritária do então presidente Hugo Chávez. Engenheira, María Corina ainda era pouco conhecida da comunidade internacional — e mesmo da maioria da população venezuelana. Ela decidira criar a organização com Alejandro Plaz, também engenheiro e diretor da consultoria McKinsey, três anos antes, convicta de que para garantir alternância de poder no país seria preciso incentivar a participação política dos cidadãos e monitorar o processo eleitoral para evitar fraudes e garantir condições justas para todos os candidatos.
O ano de criação da Súmate, 2002, representou um ponto de inflexão na trajetória de Chávez. Depois dos conturbados primeiros anos de sua presidência, ele sofreu uma tentativa de golpe em abril. María Corina é acusada até hoje de ter apoiado o golpe, algo que ela nega. Reconduzido ao poder, inclusive com suporte do então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, Chávez passou a usar o episódio para perseguir a oposição e para aperfeiçoar os meios de fraudar os resultados eleitorais. Foi a partir de então que efetivamente começou a se desenhar a ditadura chavista.
Em 2005, quando estive no escritório da Súmate em Caracas, Alejandro Plaz e María Corina me contaram sobre as falcatruas no sistema eleitoral venezuelano. Por conta das denúncias que faziam, eram perseguidos pelo chavismo já naquela época. Ambos estavam sendo processados por “conspiração”: o crime foi ter aceito cerca de 30.000 dólares de doação de uma ONG americana de promoção da democracia. Os dois estavam pessimistas, pois o juiz era chavista. O relato foi publicado na edição de VEJA de 14 de dezembro de 2005.
De todos os líderes da oposição venezuelana que entrevistei nos anos seguintes, María Corina foi a que mais angariou apoio da população e a única que permanece na Venezuela até hoje, ainda que na clandestinidade para não ser presa. Um deles, o general Raúl Baduel, morreu nas masmorras do regime. Outros acabaram escapando para o exílio.
Em 2015, tive a oportunidade de ver de perto a expertise de María Corina e de sua rede de apoiadores em fiscalizar eleições problemáticas. Na pleito legislativo daquele ano, recebi autorização para acompanhar o trabalho dela e de sua equipe durante todo o dia de votação, desde cedo até o fim da tarde. Na sede do seu partido, o Vente Venezuela, funcionava o bunker de María Corina. No subsolo, estavam instalados computadores e dezenas de celulares por meio dos quais um grupo de especialistas recebia informações de observadores espalhados por praticamente todas as seções eleitorais do país.
Quando as urnas fechavam, os dados de cada ata de votação eram repassados para o bunker e compilados para, depois, fazer frente aos resultados que seriam anunciados pelo regime chavista. No andar de cima da casa, María Corina fazia reuniões e concedia entrevistas. Um trecho em vídeo da conversa que tive com ela naquele dia foi publicado no Facebook de VEJA e está disponível aqui.
O método de monitoramento das eleições e de fiscalização das atas das urnas se provou extremamente eficiente naquele ano. A oposição tinha reunido evidências tão concretas e tão rápidas da derrota do regime, que Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, não teve outra alternativa a não ser reconhecer o resultado do pleito. Os candidatos de oposição haviam conseguido uma maioria acachapante para a Assembleia Nacional. Pouco mais de um ano depois, Maduro deu um jeito de tirar os poderes do parlamento.
Com o passar dos anos, ficou claro que seria praticamente impossível afastar Maduro do poder por meio do voto. María Corina, em diversos momentos, defendeu que ele pudesse ser destituído por pressão externa, e até pela força. Em uma entrevista que fiz com ela em 2019, essa ideia não podia ter sido colocado de forma mais enfática. “O que é inaceitável para o povo da Venezuela é que Maduro permaneça no poder. Os dias de Maduro no poder não se contam em horas, se contam em mortos”, respondeu Maria Corina quando lhe perguntei se uma intervenção militar dos Estados Unidos era uma solução aceitável para o povo venezuelano.
E, quando lhe perguntei quando chegaria o momento de recorrer a uma intervenção militar, ela retrucou: “O momento certo já passou há muito tempo. Cada dia que passa, o custo será maior. Não apenas em vidas, pelas mortes que acontecem enquanto Maduro permanece no poder. Mas porque os grupos criminosos estão se expandindo e ocupando território venezuelano.”
María Corina ainda tentou, mais uma vez, recuperar a democracia na Venezuela pelas urnas. Escolhida em 2023 para representar a oposição na eleição presidencial que ocorreu no ano seguinte, ela foi impedida por ordem do regime de concorrer. Indicou um substituto, Edmundo González Urrutia, que apesar de desconhecido deu uma surra em Maduro nas urnas — simplesmente por carregar o peso do apoio popular de María Corina. Em mais uma fraude eleitoral, a vitória da oposição foi negada (apesar de, mais uma vez, os métodos de monitoramento de atas de urnas terem produzido provas contundentes da vitória da oposição).
A coragem política e pessoal de María Corina Machado é inegável. Assim como não há dúvidas de que sua aspiração seja devolver a democracia e o progresso econômico ao seu país. Em mais de 20 anos lutando contra um regime autoritário, porém, nem sempre a via pacífica foi aquela que a Nobel da Paz deste ano avaliou ser a mais viável.