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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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Uma lição da MP do Fim do Mundo sobre o futuro

O motivo para a voracidade fiscal está no rombo das contas públicas, que só aumenta, e o passado mostra que há um padrão nessa dinâmica

Por Adolpho Bergamini
25 jun 2024, 17h44

O tempo é um tema intrigante, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Nietzsche, Kant e tantos outros já se interessaram por ele. Mas nem a mais fina filosofia conseguiu explicá-lo de modo tão envolvente quanto a trilogia De Volta para Futuro

O primeiro filme começa com a vida de Marty McFly e sua família. O personagem é corajoso e não gosta de ser chamado de covarde, mas seu pai, George McFly, é inseguro e aceita que Biff Tannen, seu superior na empresa onde trabalha, lhe faça assédios morais. No desenrolar, Marty volta no tempo, conhece seus pais no passado, altera acidentalmente a continuidade do “espaço-tempo” e deve consertar tudo desesperadamente para não ser apagado da história. Também enfrenta o jovem Biff Tannen, faz com que ele bata o carro em um caminhão de esterco e, mais ainda, faz com que seu próprio pai, ainda jovem, também o enfrente. Quando volta ao presente, tudo mudou. Agora George é uma pessoa confiante, um escritor famoso, sua família é outra, muito mais feliz, e Biff Tannen é o empregado, o “faz tudo”.

Os outros dois filmes são igualmente incríveis e há um ponto interessante que dá coesão à narrativa. Marty McFly, Doc Brown e Biff Tannen parecem estar ligados pelo destino, independentemente de onde estejam no tempo. Marty e Doc sempre constroem fortes laços de amizade, foi assim em 1955 e em 1985. McFly sempre deverá enfrentar alguém da família Tannen, seja Biff nos dois primeiros filmes, ou “Mad Dog” Tannen, no cenário do velho oeste do terceiro filme. Aliás, a família Tannen parece estar fadada pelo destino a se envolver com esterco, independentemente do século ou da década. E, no fim, Marty e Doc Brown sempre se unem e salvam o dia.

Esse loop temporal que marca De Volta para Futuro está muito presente nas ações do governo. Comecemos lembrando da Medida Provisória (MP) 1.227/2024, chamada MP do Fim do Mundo. Sem muitas alternativas para incrementar as receitas, e não tendo meios para fazer frente às despesas correntes, o governo decidiu voltar sua artilharia pesada aos créditos de PIS e Cofins que, há tempos, são utilizados como moeda de pagamento de tributos federais. A intenção da equipe econômica era postergar, tanto quanto possível, o ressarcimento desses créditos aos contribuintes e, no curto prazo, fazer com que os impostos fossem pagos com recursos financeiros do caixa dos contribuintes. O discurso oficial já estava montado: sem aumentar a carga tributária, o governo teria encontrado os meios necessários para financiar seus gastos.

Todavia, a MP do Fim do Mundo extrapolou todas as barreiras do bom senso. Do dia para a noite, parcela significativa dos contribuintes se viu diante de uma realidade assustadora: sem os créditos de PIS e Cofins, teriam sua liquidez gravemente comprometida e sérias dificuldades em adimplir não apenas suas obrigações fiscais, mas também as operacionais. Trabalhadores sem salários, fornecedores com faturas em aberto. O verdadeiro caos.

Foi uma semana tensa. Com o passar dos dias, ficou evidente que as entidades empresariais não iriam arredar pé e o Parlamento deu sinais claros de que o governo seria derrotado, caso a MP 1.227/2024 fosse levada à votação. Após muitas reuniões, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu a medida ao Executivo.

Mas olhemos o ocorrido na perspectiva do tempo.

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Em janeiro eu trouxe, nesta coluna, algumas ações do governo que já indicavam qual seria a temperatura de 2024. Falamos sobre o avanço do Fisco sobre os benefícios de ICMS concedidos pelos estados aos contribuintes que viessem se instalar em seus territórios. Também foi mencionada a intenção do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de revogar o Perse, um benefício fiscal concedido a hotéis, bares, restaurantes e outras empresas do segmento do turismo que foram extremamente prejudicados pela pandemia da covid-19. Não ficaram de fora as várias tentativas de equipe econômica de revogar a desoneração da folha de pagamento, bem com a imposição de limitações às compensações de créditos tributários obtidos pelos contribuintes em decisões judiciais.

Então, em abril, veio o relatório anual de fiscalização da Receita Federal. Foi o rugido do leão. Nele, o Fisco informou que seu desempenho, em 2023, cresceu cerca de 60% em relação a 2022, com as cobranças saltando de 137 bilhões de reais para 225 bilhões. Ficou claro que em 2024 não seria diferente. Informou que acompanharia de perto os prejuízos fiscais das empresas, que são utilizados no abatimento do imposto de renda, além de outros créditos fiscais (como os de PIS e Cofins) empregados na dedução de tributos em geral e, por fim, deu conta de que aperfeiçoaria a fiscalização, avançaria sobre operações envolvendo plataformas digitais, acordos com a OCDE e outras medidas.

O motivo para tanta voracidade fiscal está no rombo das contas públicas, que só aumenta, e o passado mostra que há um padrão nessa dinâmica. Tenhamos como ilustração o governo Dilma, que também apresentou déficits expressivos e tentou superá-los com aumento da arrecadação e ataques a certos pontos que só fazem bem ao país. Por exemplo, os benefícios fiscais concedidos a empresas que realizam inovação tecnológica foram criados em 2006 e, desde então, pesquisa e desenvolvimento passaram a fazer parte da cultura das corporações. Desde a criação do programa, o número de empresas que realizam inovação cresceu mais de 2.500% e os investimentos na área, cerca de 1.800%. Ninguém duvida do potencial econômico por trás da inovação tecnológica, mas, Joaquim Levy, o ministro da Fazenda do governo Dilma à época, chamou as benesses de “gastos tributários” e agiu para revogá-los.

Ainda sobre o passado, a certa altura de 2015, Joaquim Levy chegou a cogitar o retorno da CPMF. Sem sucesso, agiu para esvaziar o Reintegra, que é um benefício fiscal concedido a exportadores para eliminar os resíduos tributários que vão se incorporando ao custo dos produtos exportados ao longo da cadeia de produção. O objetivo do programa era a redução dos preços de nossos produtos, tornando-os mais competitivos no mercado externo. Mas, o benefício também recebeu o selo de “gastos tributários” e foi esvaziado.

No presente, temos os acontecimentos traumáticos em torno da MP do Fim do Mundo. Não há nenhuma dúvida de que o governo, naquele momento e sem nenhum escrúpulo, preferiu sangrar os contribuintes a ter que rever suas despesas. Mas a novidade é que, na semana seguinte à devolução da medida pelo Congresso, circularam informações contraditórias. Primeiro, veio a notícia de que o governo teria aceitado cortar gastos, inclusive os ministérios da Fazenda e do Planejamento já estariam com “agenda acelerada” para isso. Mas, na mesma semana da anunciada aceleração de cortes, o presidente Lula deu declaração totalmente contrária e disparou que, na sua visão, a redução do déficit público passa pela arrecadação. A declaração não foi dentro das paredes do Planalto, mas sim em um evento com empresários no hotel Copacabana Palace, patrocinado por um grande fundo da Arábia Saudita. Ou seja, foi uma declaração pública a investidores, que é contundente e não pode ser ignorada.

Pode ser que um viajante do tempo tenha vindo aos nossos dias e, acidentalmente, alterado nossa linha temporal, porque as coisas não estão fazendo sentido. Ficam piores quando analisamos o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 68/2024, que pretende regulamentar a reforma tributária.

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Permito-me não entrar em maiores explicações a respeito do regime não cumulativo da CBS e do IBS, porque o tema já foi abordado em outros textos desta coluna. Basta dizer, aqui, que as aquisições de mercadorias tributadas geram, ao adquirente, o direito à tomada de créditos dos tributos, que serão utilizados na dedução da carga tributária subsequente. Mas, de acordo com a visão do governo, caso as operações mercantis sejam imunes ou isentas da CBS e do IBS, os créditos dos tributos apropriados anteriormente devem ser anulados.

Esse é exatamente o ponto que deflagrou a revolta nacional em torno da MP do Fim do Mundo. Lembremos, ao vedar a utilização dos créditos de PIS e Cofins, os contribuintes seriam forçados a incluir seus valores no custo dos produtos, aumentando os preços. Ao estipular que os créditos da CBS e do IBS devem ser anulados em caso de operações isentas, o PLP n. 68/2024 age da mesma forma e a consequência também será o aumento do custo, e dos preços, de uma variada gama de mercadorias, como os alimentos da cesta básica. Quem pagará a conta será o consumidor final.

Aumento de gastos, aumento de arrecadação, contribuintes acuados e a população pagando mais por produtos em razão do descontrole do governo. Tudo vem se repetindo pelos anos. Lembra muito a trilogia. Biff Tannen, muito parecido com o governo, que sem pudores faz bullying contra os mais fracos e está sempre às voltas com os caminhões de estercos de suas medidas, ou mesmo Doc Brown e Marty McFly, que, como os contribuintes e a população, estão sempre correndo para não serem apagados da história.

Mas o levante dos contribuintes e sua resistência firme à MP do Fim do Mundo passaram uma mensagem importante. Tal como a reviravolta de George McFly, que tomou coragem para enfrentar Tannen, a sociedade mostrou que é forte, determinada e pode se opor à farra do descontrole fiscal do governo.

Talvez ainda seja cedo para dizer que conseguimos mudar a história, mas ficou claro que não há outra alternativa possível. Temos que agir agora, no presente, porque infelizmente não há Marty McFly, Doc Brown ou um DeLorean voador para voltarmos ao passado e mudarmos o futuro.

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