O porrete e a fala mansa do Fisco
Com carga tributária em alta e fiscalização rigorosa, governo adota política de concessões limitadas, pressionando contribuintes

John Quincy Adams não nasceu em berço de ouro, propriamente, mas sim em um berço de expectativas. Era filho de John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos, e o sobrenome lhe pesava. Estreou na diplomacia com apenas 26 anos ao ser nomeado embaixador na Holanda. Também carimbou o cargo na Rússia, em Portugal e na Grã-Bretanha. Elegeu-se senador aos 36 anos e no governo do presidente James Monroe foi nomeado secretário de Estado dos Estados Unidos.
No posto, John Quincy Adams fez história e até hoje é tido como um dos mais exímios diplomatas que a chancelaria americana já viu. As honras não são infundadas. Por exemplo, teve atuação proeminente nas negociações do Tratado de Gent, que deu fim à Guerra Anglo-Americana, e foi o grande articulador da Doutrina Monroe. Sob o slogan “a América para os americanos”, o país afirmou que não haveria mais espaço para colonialismos de qualquer ordem e que os continentes americanos não fariam parte do novo desenho das forças europeias, formado após as guerras napoleônicas.
As ideias de Quincy Adams reverberaram na história. No início do século XX, o presidente Theodore Roosevelt extremou a Doutrina Monroe ao criar o Big Stick. Em suma, passou a mensagem de que a diplomacia dos Estados Unidos estava aberta, mas qualquer tentativa de intervenção estrangeira nas Américas teria como consequência uma resposta militar imediata. O slogan não poderia ser melhor: “fale manso, mas com um porrete na mão”.
Tenho a impressão de que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adotou o Big Stick como política.
Vamos lembrar. Em dezembro de 2023 a equipe econômica começou a se movimentar para revogar a desoneração da folha de salários. Jamais arredou pé. Mesmo com a continuidade do benefício aprovada pelos meios democráticos, o Executivo atropelou o Congresso ao editar medida provisória para reinstituir a cobrança e foi ao Judiciário para fazer valer a sua visão.
Não parou por aí. Tivemos modificações legislativas para que os benefícios de ICMS concedidos pelos estados sejam tributados por IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, além da restrição ao uso, pelos contribuintes, de créditos fiscais reconhecidos judicialmente para a compensação de outras dívidas tributárias. Os segmentos econômicos que foram indubitavelmente prejudicados pela pandemia da covid-19 sangraram, porque o regime de isenção dado a eles, o Perse, voltado ao setor de eventos e aproveitado também por alguns outros, foi revogado antes do tempo previsto (era para vigorar até 2027) e pegou todos de surpresa.
Depois veio o escândalo da chamada “MP do Fim do Mundo”. Em uma canetada, a equipe econômica quis revogar importantes benefícios que empresas dos segmentos de medicamentos, agronegócio, alimentos, autopeças, entre outros, fruíam há anos. A sociedade civil se movimentou e a pretensão não foi para frente.
O futuro não promete tempos animadores, porque a reforma tributária virá com amplo potencial destrutivo sobre as contas de alguns contribuintes, como prestadores de serviços em geral e construção civil, sem contar o agravamento da carga tributária sobre itens sensíveis, como alimentos, medicamentos, aluguéis e os juros bancários, que têm forte influência no aumento de preços.
Mais recentemente, assistimos o governo Lula enfiar os pés pelas mãos novamente. Na tentativa de fazer sua mea culpa e passar a mensagem de que tinha a intenção de limpar as contas públicas, o ministro Fernando Haddad apresentou um plano ineficiente, com reduções de gastos insuficientes e que estão longe de ser o bastante para estancar a sangria do Erário. Por isso, na mesma medida, propôs a introdução da tão esperada (e assustadora) tributação sobre os dividendos.
Há também uma realidade que ainda não é pública e notória, mas certamente fará parte de relatórios da Receita Federal ao longo do ano que vem. As empresas e os advogados que as atendem vêm sentido paulatinamente, e com cada vez mais intensidade, que o número de fiscalizações e autos de infração lançados pelo Fisco aumentou, mesmo que muitos dos temas já contem com pronunciamentos judiciais favoráveis aos contribuintes.
Tudo parece ser parte de um grande projeto, porque em fevereiro de 2024 o governo encaminhou o Projeto de Lei n. 15/2024, pelo qual pretende instituir programas de conformidade tributária e aduaneira maiores do que os existentes até então. Trocando em miúdos, se o contribuinte receber o selo de bom pagador, terá direito a orientações e autorregularizações antes que uma acusação fiscal seja formalizada, além descontos na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL de até (meros) 3%. Também terá o direito de não ter seus bens gravados como garantias em órgãos oficiais, tais como cartórios de registros de imóveis e departamentos de trânsito.
Para esse grande ”tapinha nas costas”, o contribuinte deve ser um bom pagador, o que implica dizer que o contribuinte, para ter nota 10 na prova e receber estrelinha, deverá pagar tudo sem contestar. Percebem? Desde dezembro de 2023 o governo Lula vem aumentando muito o peso dos contribuintes. E a cereja do bolo é essa proposta, que pode ser lida de um modo bem claro: aceitem tudo, paguem tudo (ou ao menos devam pouco) e não contestem, porque se não pagarem eu irei atrás de vocês com toda força.
As exitosas experiências de John Quincy Adams na diplomacia lhe instigaram ambições maiores, a ponto de torná-lo o sexto presidente dos Estados Unidos em 1824. Mas os resultados da apuração eleitoral foram controversos e a consequente polarização partidária tornaram o seu governo difícil, com um parlamento extremamente dividido. Poucas propostas passaram no Congresso e o sucesso de sua administração foi colocado em xeque. Claro, não se reelegeu.
Todavia, Quincy Adams logo voltou ao cenário público. Era um orador brilhante e advogado respeitado. Participou da defesa do famoso “Caso Amistad”, quando conseguiu que os escravos sobreviventes do naufrágio de um navio negreiro fossem libertados. A causa lhe deu um novo norte. Retornou à política como deputado e fez discursos inflamados pela abolição da escravidão na Câmara dos Representantes, muito antes da Guerra de Secessão. Em um desses pronunciamentos fervorosos, sofreu um derrame cerebral enquanto ainda falava no púlpito. Os anais contam que os ouvintes ficaram profundamente impactados, inclusive um jovem deputado idealista que estava em seu primeiro mandato, chamado Abraham Lincoln.
É curioso como John Quincy Adams consegue reunir em sua história tantos temas de interesse da população brasileira atual. Para o resumo deste texto, o que fica é que a Receita Federal vem polindo o seu porrete e afinando sua fala mansa. Infelizmente não há hoje, no país, uma voz ativa como as de John Quincy Adams ou Abraham Lincoln para defender direitos de contribuintes, ou melhor, de pessoas, que estão afundando em um navio sem leme que está indo em direção às pedras. Quem poderia fazê-lo está justamente batendo palmas para o arrocho fiscal e o descalabro. Enfim, como dito no início do século XX, “fale manso, mas com um porrete na mão”.