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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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As loucuras da reforma tributária e o destino de Simão Bacamarte

As propostas do IBS e da CBS sobre operações imobiliárias e financeiras podem ter repercussões tributárias grandes e graves

Por Adolpho Bergamini
Atualizado em 21 Maio 2024, 11h43 - Publicado em 21 Maio 2024, 11h42

É difícil dizer qual o melhor texto de Machado de Assis, mas muitos apostam em “O Alienista” para ser o expoente. Na história, Simão Bacamarte, médico renomado em Portugal e na Espanha, decide se mudar para Itaguaí, sua terra natal no Rio de Janeiro. Homem racional, ele se casa com D. Evarista, que não era formosa, nem bonita ou simpática, mas o médico via na mulher os atributos perfeitos para lhe dar filhos robustos, saudáveis e inteligentes. Os filhos não vieram, então o doutor mergulhou suas frustrações nos estudos da psiquiatria, da saúde da alma, como dizia. No desenrolar do conto, Simão Bacamarte constrói a Casa Verde para trancar os lunáticos. Não demorou muito para ver maluquices em toda gente e a cidade inteira foi internada. Mas, ao final, compreende que o maluco mesmo era ele, então solta a população, interna a si próprio e morre sozinho no hospício.

A loucura é a tônica certa para o presente ensaio porque, de acordo com o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 68/2024, a proposta “oficial” para regulamentar a Reforma Tributária, o governo tem pretensões concretas de colocar as operações imobiliárias e financeiras na mira do Imposto sobre Bens e Serviços, o IBS, e da Contribuição sobre Bens e Serviços, a CBS. Isso acende algumas luzes amarelas porque as repercussões tributárias são grandes… e graves.

Falemos primeiro das operações imobiliárias, mas, antes é necessário um recorte. O PLP n. 68/2024 estabelece a incidência do IBS e da CBS sobre alienações de imóveis, atos onerosos constitutivos de direitos reais, tais como usufruto e penhor, locação e arrendamento, servidão, cessão de espaço, permissão de uso e direito de passagem. Os assuntos são muitos e por isso a abordagem de hoje está restrita ao tema das alienações de imóveis, os demais serão trazidos oportunamente nas próximas semanas.

Segundo o PLP n. 68/2024, a cobrança da nova carga fiscal será sobre o valor da alienação, propriamente, ou sobre o valor de referência do imóvel, o que for maior. A expressão “o que for maior” logo chama a atenção porque indica que as bases de incidências do IBS e da CBS podem não ser o valor de alienação acordado entre alienante e adquirente, mas sim o tal valor de referência, caso seja maior do que o real preço do negócio. As regras gerais para a apuração dessa base presumida ainda não são conhecidas, mas o projeto encaminhado pelo governo dá algumas pistas. Segundo ele, o cálculo do valor presumido de mercado do imóvel terá como métricas os preços praticados no mercado imobiliário, as informações enviadas pelas administrações tributárias e também pelos serviços registrais e notariais.

A fixação da base do IBS e da CBS nessas condições encontra gigantescas barreiras constitucionais, porque, de acordo com o princípio da capacidade contributiva, as regras tributárias devem incidir sobre o real valor do negócio jurídico e cobranças que o excedam avançam sobre o patrimônio do contribuinte de modo confiscatório. É o que pode ocorrer caso o Fisco venha a cobrar seus impostos com base em números presumidos superiores ao valor da transação imobiliária.

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O tema não é novo e o Judiciário vem repelindo os artifícios empregados para cobranças com base em presunções desconectadas da realidade. Foi assim que o STF se comportou, em 2016, ao declarar a inconstitucionalidade da cobrança do ICMS que, cobrado via substituição tributária, tenha sua base presumida superior aos valores da venda realizada pelo comerciante ao consumidor final. As presunções no âmbito dos negócios imobiliários também não se sustentam e o STJ decidiu, em 2022, que embora a base de cálculo do ITBI deva ser o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, o preço da transação declarado pelo contribuinte goza de presunção de veracidade, não cabendo ao Fisco dar cabo de arbitramentos.

A história das disputas mostra que, caso as regras de composição da base do IBS e da CBS sejam demasiadamente onerosas, os contribuintes descontentes têm bons fundamentos para buscar socorro no Judiciário. Talvez para mitigar riscos e litígios, o PLP n. 68/2024 previu “redutor de ajuste” da base de cálculo, que conta com regras complexas e varia conforme o momento da alienação do imóvel, se antes de 31 de dezembro de 2026 ou a partir de 1º de janeiro de 2027. A proposta também traz o “redutor social” de R$ 100.000,00 às alienações de bem imóvel residencial novo. Ainda não está claro o real impacto dessas reduções, o mercado ainda está fazendo contas.

E aqui começa a ser desvendada a loucura que Bacamarte apontaria se estivesse conosco.

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As operações imobiliárias andam de mãos dadas com as instituições financeiras, porque incorporadoras contraem financiamentos para construir seus empreendimentos e, do outro lado da moeda, adquirentes de unidades imobiliárias também recorrem a financiamentos para formalizar seus negócios.

Atualmente, os juros cobrados pelas instituições financeiras em contratos de mútuo e financiamento não estão sujeitos a impostos sobre consumo. Mas, nos termos propostos pelo PLP n. 68/2024, operações de crédito, empréstimo, financiamento e outras passam a ser sujeitas ao IBS e à CBS. O peso fiscal que recairá sobre o crédito ainda é incerto, porque as alíquotas não são conhecidas. De acordo com o PLP n. 68/2024, essa apuração passa por simulações que deverão considerar a proporção das receitas das instituições financeiras com tarifas, comissões e juros, bem como aquisições que poderiam lhes gerar créditos tributários. Tomando conhecimento da proporção das receitas de juros em relação às receitas totais, o governo poderá isolá-las e estimar qual será a carga fiscal, já considerando os descontos de créditos de IBS e CBS que as instituições terão direito.

Estamos diante de radicais alterações na tradição do direito tributário nacional. Pela primeira vez estamos testemunhando a criação de tributos sobre consumo recaindo sobre atividades imobiliárias e de financiamento. Embora ainda existam aspectos obscuros, temos a certeza de que, pela dinâmica e natureza desses tributos, os seus encargos irão ter repasse nos preços dos imóveis e no spread dos financiamentos bancários.

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Há, portanto, a certeza de que o mercado imobiliário trabalhará em valores majorados, assim como os empréstimos, mútuos e créditos bancários.

Agora, Simão Bacamarte se senta e observa o paciente. Em abril deste ano, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que quer fortalecer a construção civil e ampliar o crédito para o setor imobiliário. Segundo ele, a construção civil é “preciosidade” em qualquer lugar do mundo e o crédito, “alavanca imprescindível” para o desenvolvimento do país.

Mas o encarecimento das transações imobiliárias e dos mútuos bancários não condiz com pronunciamentos da equipe econômica e seus planos para o crescimento da economia brasileira. Essa “tempestade perfeita” tornará impraticável o avanço das operações imobiliárias, porque o setor, a “preciosidade”, e o financiamento bancário, a “alavanca imprescindível”, passarão ser altamente taxados. Ficará mais caro para as incorporadoras contraírem empréstimos e, provavelmente, elas repassarão os encargos no preço das unidades imobiliárias. Também ficará mais caro para os adquirentes, que, além de pagarem mais pelos imóveis, também pagarão mais pelos encargos que serão embutidos em seus financiamentos.

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O frenesi em torno da reforma tributária ainda vai dar muito o que falar. Todas as propostas são aplaudidas, até mesmo as que notoriamente aumentam o custo da vida da população. E quem vê loucura nisso acaba sendo taxado de louco.

A desventura de Simão Bacamarte é triste. Ele tentou entender a loucura, mas percebeu que, se todos são loucos, então a loucura coletiva é a nova versão da sanidade que ele não conseguiu compreender. Foi mais prudente se trancar sozinho no sanatório.

Se o hospício estiver de portas abertas, preciso visitar o Simão.

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