A fotografia e o novo imposto de renda
Um ângulo precisa ser observado na discussão sobre tributação de dividendos: investidores precisam ter estímulo e segurança para alocar recursos

Há cerca de um ano eu desenvolvi gosto pela fotografia. Começou como um hobby, acabou se tornando obsessão e cheguei a fazer alguns cursos sobre história da arte, para entender mais sobre composições de imagens, harmonia de cores, proporções, perspectivas, coisas assim.
Então tive a ideia de compreender as circunstâncias atuais da tributação brasileira a partir do olhar fotográfico. Aconteceu depois de uma aula sobre Caravaggio, o estilo barroco e, principalmente, a pintura “As meninas” de Diego Velázquez, que propôs uma verdadeira revolução na perspectiva da imagem. Puxem aí na internet, vale a pena dar uma olhada. Velázquez não retrata o Rei Filipe IV, da Espanha, pelo modo mais usual e esperado, mas sim pela perspectiva do próprio modelo. Notem que o Rei Filipe está posicionado atrás do quadro, consegue enxergar a si mesmo ao fundo, pelo espelho, e vê o pintor que o está retratando, que é o próprio Velázquez. O mais importante era o olhar do rei, não o rei. Obra brilhante, ícone da pintura ocidental.
Vamos analisar a proposta de alteração do regime de imposto de renda por outro ponto de vista, a tônica que vem sendo dada pela mídia a respeito do tema deve considerar outras perspectivas, tal como Velázquez fez.
Por meio do Projeto de Lei (PL) n. 1.087/2025, o governo pretende isentar o imposto de renda devido por pessoas físicas que ganham até 5 mil reais por mês. Em contrapartida, os dividendos recebidos por empresários, hoje isentos, passariam a ser tributados em 10%, desde que os seus rendimentos totais, incluindo os dividendos, sejam superiores a 50 mil mensais. Na época em que o PL n. 1.087/2025 foi apresentado, os pulmões de integrantes da equipe econômica do governo e de pessoas mais ligadas à esquerda se encheram para dizer que a proposta estabelece justiça fiscal, porque milionários pagam menos impostos do que a população em geral.
O coro não terminou, porque notícias dessa natureza têm se multiplicado, como a publicada no site da VEJA NEGÓCIOS no último dia 2 de maio. Ao tratar do novo imposto de renda, a reportagem deu ênfase a informações da Receita Federal que pretendem ser marcantes, até mesmo estéticas. No Brasil, existem três bilionários que recebem cerca de 1 bilhão de reais por ano e cujos impostos de renda representam, em média, 1,5% dos rendimentos; há o grupo com rendimentos entre 750 mil e 1 bilhão de reais, cuja alíquota média é de 2,54%; e para os brasileiros que ganham em torno de 4 mil reais, o gravame médio está em 8%. Ficou a sugestão de que o imposto de renda é regressivo e deve ser alterado.
Mas a retórica deixa escapar um ângulo fundamental, que é a visão do empresário e as razões que o motivam.
A proposta de isenção do imposto de renda sobre dividendos veio em agosto de 1995 com a apresentação do PL n. 913/1995. A conversão veio em dezembro do mesmo ano com a Lei n. 9.249/1995. A tramitação foi rápida e havia razões para isso. Saíamos de períodos turbulentos, o primeiro presidente eleito desde a década de 1960 havia sido removido do poder. Em 1992, ano do impeachment, a hiperinflação bateu 1.700% e, no acumulado de 12 meses até junho de 1994, chegou a 4.900%. Não tínhamos investimentos e algo precisava ser feito. Uma das alternativas para que investidores passassem a ver, como oportunidade, um país tão conturbado foi justamente a isenção do tributo sobre dividendos. Deu certo.
Atualmente, não temos inflação galopante, todavia há sinais de que a credibilidade do país está em xeque, da mesma forma como esteve no passado.
Do ponto de vista econômico, as notícias falam por si só. Conforme notícias, o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) apurou que 60% dos gastos do governo são com a Previdência Social e despesas com pessoal (não computados os valores relacionados à última fraude ao INSS, estimada em mais de 8 bilhões de reais). Quando somadas outras rubricas, tais como bolsa família, benefícios sociais e precatórios, a conclusão do Ipea é a de que, hoje, 98% do orçamento da União está comprometido, podendo chegar a 100% a partir de 2027.
E aqui cabe perguntar: como o empresário confiará seus recursos no Brasil? Como saber se o país irá saldar obrigações com construtoras, fornecedores de bens e serviços, com hospitais e órgãos púbicos, por exemplo? Com saber se, no futuro, o país pagará os títulos públicos emitidos? Com 100% do orçamento comprometido, declarará moratória?
Não percamos de vista que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está agindo para emplacar o que ele chama de consequencialismo jurídico. Com isso, diz estar alertando o Poder Judiciário que as decisões proferidas repercutem no orçamento público e, segundo o próprio Haddad, o governo já conta com vitórias nesse campo, uma delas foi a liminar dada pelo STF que suspendeu os benefícios da desoneração da folha de pagamento. Esse modelo será replicado em outras causas de interesse da União e já há até mesmo um órgão para dar cabo desse acompanhamento – o Comitê de Risco Fiscal de Natureza Judicial.
Esse dado passa mensagens muito ruins. A primeira é a destruição do direito tributário, que desde tempos imemoriais luta para ser um conjunto de regras – com destaque para o princípio da legalidade – que permite o abastecimento do Erário, ao mesmo tempo que garante que contribuintes não sejam submetidos a cobranças indevidas. Mas, se a cobrança de impostos deixar de ser conforme as regras e tiver como orientação as necessidades dos cofres públicos, voltaremos à Idade Medieval.
A segunda mensagem está no processo de outorga de “carta branca” que está em andamento. Caso a nova tese de Haddad se concretize, os governos terão uma espécie de autorização tácita para instituir tributos indevidos, apresentar a conta aos contribuintes e, no limite, depois de anos ou décadas, ser instado pelo Judiciário a apenas não mais realizar a cobrança, mas sem serem obrigados a fazer pagamentos retroativos a quem pagou o que não devia (é a chamada modulação de efeitos).
Se somarmos o novel consequencialismo à histórica insegurança da jurisprudência trabalhista, consumerista, tributária, entre outros ramos, vamos concluir que os riscos que um investidor aceita para investir no Brasil são altos, muito altos. A isenção dos dividendos, nesses contornos, vem como um prêmio pelo sucesso, pela superação, e exatamente por isso não pode ser vista como um dos males do direito tributário brasileiro.
No entanto, como a aprovação do novo imposto parece ser certa, então proponho outro olhar sobre o tema. Quando a isenção foi inaugurada, em 1995, a contrapartida foi o aumento do imposto de renda devido por pessoas jurídicas, ocasião em que chegou aos atuais 34%. Se o caminho for pela retomada da tributação sobre dividendos, devemos ter como efeito decorrente a minoração do imposto das empresas.
Na fotografia, o contraste é a eliminação de tons médios, que, se extremada, pode fazer com que qualquer cor se torne branco ou preto. Os debates atuais não podem ficar apenas na torcida, em sentimento de vingança, porque o branco e o preto não unem ninguém. Há razões para certas medidas e há relações de causas e efeitos que a tomada de certas posturas pode deflagrar. Investidores são importantes para o país, eles precisam ter estímulo e segurança para alocar recursos por aqui. Pensemos na melhor composição de imagem que podemos dar, no final das contas, todos queremos um bom retrato para o Brasil, quem sabe até mais icônico do que o de Diego Velázquez.