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De olho nos tributos

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Dados e análises sobre os impostos e seu efeito na economia
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A contradição das regras de não cumulatividade do IBS e da CBS

Saudades da Aristóteles: O PL que reúne as visões do governo em torno da Reforma Tributária, está repleto de contradições

Por Adolpho Bergamini
13 Maio 2024, 09h07

Aristóteles talvez seja o maior pensador que já existiu. Sua filosofia avançou sobre variados temas do conhecimento, como metafísica, lógica, política, retórica, ética, poiética, física e biologia. Mesmo os mais desavisados já ouviram falar do mestre, porque palavras como “silogismo” e “falácia” correm na boca de todos que querem se referir a um raciocínio lógico, no caso do silogismo, ou a um pensamento aparentemente lógico, mas construído em proposições falsas, no caso da falácia.

Em linhas gerais, a formulação de um pensamento verdadeiro passa pelo teste das leis lógicas da identidade, da não contradição e do terceiro excluído. Trocando em miúdos, quer dizer que uma coisa deve ser igual a si mesma (1ª lei); logo, essa mesma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser (2ª lei). Das duas primeiras vem, como arremate, a lei do terceiro excluído: ou uma coisa é, ou ela não é, não havendo uma terceira possibilidade. Tudo para evitar a contrariedade do discurso. No robusto “Curso de Filosofia Aristotélica”, Eduardo C. B. Bittar mergulha nos elementos de formação da contradição e dos modais de contrariedade, para então definir o que realmente é uma contradição. Diz ele que as opiniões não são contrárias pelo fato de haver “coisas contrárias por objeto ou conteúdo”, mas, sim, por se “comportarem de modo contrário”.

As lições de Aristóteles vêm à mente porque o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 68/2024, que reúne as visões do governo em torno da Reforma Tributária, está repleto de contradições e a principal delas está no regime não cumulativo da Contribuição sobre Bens e Serviços, a CBS, e do Imposto sobre Bens e Serviços, o IBS.

Há alguns dilemas em torno da tributação sobre o consumo, um deles está no efeito cascata causado pela incidência de impostos em mais de uma etapa da cadeia de comercialização de um bem ou serviço. Se nenhuma medida for adotada, essas sucessivas incidências, chamadas “plurifásicas”, inflarão artificialmente o preço que o consumidor final deverá pagar. A matemática explica os motivos. Em uma cadeia hipotética formada por três fases, a indústria calcula tributos sobre o preço de venda que cobra do distribuidor. Em suas contas, o distribuidor forma o seu preço a partir de seu custo de aquisição, que já veio gravado pelos impostos do fabricante, e sobre ele lança novos tributos. O varejista, então, terá em seu estoque mercadoria cujo custo é formado pelo imposto de dois outros contribuintes e, sobre o seu valor de venda, haverá um novo cálculo tributário. No final, o consumidor pagou a conta não apenas da mercadoria, mas também dos tributos de três etapas mercantis que se somaram ao preço.

Extirpar essa cumulatividade é um desafio e a literatura mostra que os países já lançaram mão de algumas tentativas para fazê-lo. No Brasil, o primeiro imposto sobre vendas foi instituído em 1922, mas somente na Emenda Constitucional n. 18/1965 é que veio a ideia de um regime não cumulativo para fazer frente ao indesejado efeito cascata de tributos em cadeias plurifásicas. A Constituição de 1988 manteve a regra. Grosso modo, os encargos que incidem em compras de bens e serviços constituem créditos para o contribuinte reduzir sua carga tributária quando os revender.

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E aqui está o grande ponto do regime não cumulativo. A autorização à tomada de créditos faz com que os tributos repassados nos preços sejam retirados dos custos de aquisição, que passam a ser reconhecidos como “moedas escriturais” para seu pagamento. Como consequência, uma vez que esses custos não serão computados por encargos fiscais, a formação dos preços de revenda tomará como bases valores de custos livres de impostos e… voilà, o efeito cascata está eliminado.

Embora singelo à primeira vista, o desenho atual da não cumulatividade gerou incontáveis disputas entre fiscos e contribuintes. De acordo com levantamento realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria em 2022, de todos os processos relacionados ao IPI, ao PIS e à Cofins em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, cerca de 49% são relativos a casos de compensações de créditos. Não há dados sobre os contenciosos administrativos estaduais, mas no Judiciário o CNJ apurou que quase 11% de todas as ações em curso nos tribunais do país estão relacionadas à compensação de créditos fiscais. As cifras desse conjunto de processos são bilionárias.

O contencioso tem origem na forma como as legislações preveem as circunstâncias em que os créditos podem ser aproveitados. Fazem parte do problema dispositivos legais obscuros, que impõem severas restrições à sua apropriação e dão azo às mais variadas interpretações, além de decisões administrativas e judiciais que sofrem reviravoltas de tempos em tempos. Também estão na conta do contencioso as obrigações acessórias complexas que o contribuinte está obrigado a cumprir, porque frequentemente geram multas em montantes expressivos, apesar dos altos investimentos realizados pelas empresas para estar em conformidade fiscal.

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Para dar fim aos imbróglios, o PLP n. 68/2024 inovou radicalmente a tradição brasileira em torno dos regimes não cumulativos. As novidades positivas estão na simplificação do sistema e na permissão para que todas as aquisições de bens e serviços confiram créditos da CBS e do IBS ao contribuinte, exceto os de uso pessoal dos sócios. Mas há uma previsão muito negativa. Segundo o texto, apenas as exações recolhidas pelo vendedor podem gerar esses créditos.

Mas esse método foge à lógica. Voltando às explicações, a cumulatividade de um dado tributo está em seu repasse no preço de venda. A não cumulatividade, por sua vez, reside justamente na possibilidade de sua retirada do custo de aquisição incorrido pelo adquirente. Portanto, a solução do efeito cascata está no campo dos negócios comerciais havidos, na formação de preços e no repasse do gravame fiscal, que é contabilizado pelo comprador como um direito de crédito fora do custo. Essa dinâmica nada tem a ver com o recolhimento dos tributos pelo vendedor, porque mesmo que ele caia em inadimplência, terá repassado o ônus fiscal ao adquirente.

A limitação proposta no PLP n. 68/2024 é perversa. Se mantida, caso seu fornecedor não pague os impostos que deve, o contribuinte não poderá tomar créditos sobre bens ou serviços que adquirir. E se não apropriar os créditos, obviamente irá repassá-los no preço de revenda, tornando cumulativos os tributos que deveriam ser não cumulativos. Nesse contexto, a não cumulatividade da CBS e do IBS é contraditória, afinal, se comporta de modo contrário ao propósito do próprio regime, que é eliminar o efeito cascata que acaba por deixar os preços mais altos e contaminar toda a economia brasileira.

Aristóteles deixa saudades.

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