A bilionária pauta tributária no STF e a Alma Imoral
Casos que aguardam julgamento pelo STF têm possíveis impactos da ordem de R$ 712 bilhões para o Estado
A alma é imoral, transgressora, e o corpo é marcado pela moralidade e pelo apego ao status quo. Essas afirmações constituem o cerne de A Alma Imoral, de Nilton Bonder, e servem de mote ao desenvolvimento dos argumentos da obra. O texto começa pela primeira das transgressões, o pecado original de Adão e Eva, que segundo ele não foi uma tentação do corpo, cujo único desejo era o de procriar no Paraíso para cumprir o mandamento, mas sim da alma, para cumprir seu desígnio desobediente e desviante.
O corpo descobriu a nudez e criou vestes, descobriu a vida e a morte e inventou a moral para ter bases seguras à sobrevivência. Mas a alma transgressora tornou Adão e Eva seres humanos, e o elemento transgressivo passou a fazer parte de qualquer estrutura que responda pelos interesses humanos. Transgredir é transcender e a evolução humana vem pelo rompimento de padrões e modelos antes estabelecidos.
No direito tributário, a transgressão vem pelo processo e pelo questionamento firme de contribuintes contra cobranças indevidas, ilegais e inconstitucionais. Mas parece que para muitos essa postura é imoral. Tenhamos o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que no final de julho declarou a uma plateia de empresários e advogados que eles são responsáveis pela insegurança jurídica no país, porque fazem muitos questionamentos judiciais que “sabem que vão perder”. Ou mesmo o ministro Roberto Barroso, também do STF, que em janeiro, ao participar de evento realizado na Suíça por uma parceria entre VEJA e o Lide, afirmou que a insegurança jurídica no Brasil é uma lenda, exceto em três áreas, entre elas a tributária, porque os contribuintes estariam fazendo “apostas” ao buscar o pronunciamento do Poder Judiciário.
Manifestações como essas ganham holofotes naturalmente, mas o tema fica ainda mais relevante quando se vê a pauta de casos que aguardam julgamento pelo STF. São ao menos 32 teses tributárias e, segundo estimativas, os possíveis impactos ao Erário são da ordem de 712 bilhões de reais.
Neste mês, por exemplo, a Corte decidirá a tese da exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins, que é “filhote” da chamada “tese do século”. Quando a julgou, o STF entendeu que o ICMS não pode fazer parte do cálculo das contribuições e, agora, prestadores de serviços contribuintes de ISS querem para si o mesmo tratamento. Caso tenham sucesso, as perdas da União girariam em torno dos 35 bilhões. Também haverá de ser julgada outra “tese filhote”, que diz respeito à retirada do PIS e da Cofins de suas próprias bases de incidência (o chamado cálculo por dentro) e pode impactar os cofres públicos em cerca de 65 bilhões de reais.
A agroindústria também está de olho no STF porque, em agosto, será decidida uma antiga discussão em torno da contribuição previdenciária devida por produtores rurais, o Funrural. A cobrança do próprio tributo já foi validada, mas ainda não está claro se a agroindústria é que deverá pagar a conta dos 20 bilhões de reais que pesam sobre o setor.
As pessoas físicas também podem ser afetadas pelo STF, porque a Corte também deverá deliberar sobre as regras e limites à dedução de gastos com educação para apuração do imposto de renda. O tema pode machucar o bolso de chefes de família, mas pode doer ainda mais para União, ante o possível impacto de 115 bilhões.
Os números impressionam, mas também chama a atenção o fato de que os contribuintes tiveram sucesso em muitas discussões travadas contra a Fazenda Pública no passado. Incontáveis leis tributárias foram declaradas inconstitucionais, outros tantos autos de infração foram, e são, anulados diuturnamente, porque estão recheados de ilegalidades, sem contar inumeráveis entendimentos das administrações fazendárias que são revertidos pelo Poder Judiciário.
De acordo com levantamento divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, em 2020 o Poder Judiciário contava com cerca de 31 milhões de processos de natureza tributária, aí incluídas tanto as ações apresentadas por contribuintes, como também execuções fiscais pendentes de julgamentos. No entanto, o contribuinte não é a causa do imenso fluxo de processos que tramitam no Poder Judiciário. Há outros suspeitos. Os primeiros são os fiscos, que, como visto, lançam mão de suas cobranças indevidas; o outro é o próprio Poder Judiciário, que retirou a autoridade de suas decisões ao relativizar a “coisa julgada”.
O caso aconteceu em fevereiro de 2023, quando a Corte apreciou certas questões relacionadas à CSLL devida por uma rede de supermercados. No início da década de 1990 essa rede obteve decisão judicial que a livrou do pagamento do tributo. Com o fim do processo, a decisão final virou “coisa julgada”, o que deveria torná-la permanentemente imutável. Mas a Fazenda Nacional insistiu na cobrança e a questão foi parar novamente no STF. Ao final, os ministros decidiram que a coisa julgada sobre as relações tributárias continuadas, chamadas de “trato sucessivo”, podem ser revisadas e desconstituídas.
O entendimento é perigoso por si só, mas ganha contornos de extrema gravidade na medida em que a esmagadora maioria dos tributos nacionais são de trato sucessivo, afinal, são apurados periodicamente, seja no mês, no trimestre ou no ano. Ou seja, afeta a todos. Nesses casos, o STF disse que a Fazenda Pública não precisa acionar a empresa no Judiciário, porque a quebra é automática e retroativa. Mas também disse que o mesmo vale ao contribuinte, que poderá questionar novamente a exigibilidade de dado tributo se seu trato também for sucessivo, nas mesmas condições do Fisco.
Então, indaguemos: se normas inconstitucionais são editadas todos os dias, se o Fisco dá cabo de cobranças indevidas a todo momento e se o STF passa uma incontestável mensagem de que seus entendimentos podem ser modificados, mesmo nos casos de coisa julgada, por que o contribuinte é tido como o responsável pela alta litigiosidade tributária no país? Os 31 milhões de processos tributários em curso, as estimativas de impactos orçamentários de 712 bilhões de reais e a insegurança jurídica instalada constituem consequências de uma série de irresponsabilidades cometidas por uma lista de agentes, todavia o contribuinte não está entre eles.
Mas há quem diga que contribuintes litigam demais e que aqueles que buscam legitimação de seus direitos junto ao Judiciário são apostadores. Aqui surgem outras indagações: nesse jogo de apostas do contribuinte, quem seriam os crupiês que dão as cartas? E onde funcionam os cassinos?
A Alma Imoral gera muitas reflexões, especialmente uma passagem em que Nilton Bonder fala de uma das explicações ao Êxodo. Após fugir do faraó, todos ficam às margens do Mar Vermelho aguardando algum desfecho. Reuniram-se em quatro acampamentos: uns queriam voltar; outros lutar; um grupo queria apenas rezar; e o último se jogar no mar, em total desespero. Mas um indivíduo se levantou e se pôs em marcha em direção à água. A princípio nada aconteceu, mas quando a água bateu no nariz, o mar se abriu. Ele rompeu com os pensamentos dos quatro acampamentos, transgrediu-os e mudou a ordem das coisas.
A transgressão do contribuinte aperfeiçoa o sistema tributário e desqualifica a unanimidade que falas como a do ministro Alexandre de Moraes pretendem estabelecer. Os ganhos que os contribuintes tiveram no passado denunciam que não estão errados em contestar. A pauta tributária do STF é bilionária e o mês de agosto vai exigir atenção. Continuemos na transgressão e nos coloquemos em marcha.