Por que, afinal de contas, o país precisa de um ajuste fiscal?
A razão é óbvia: porque a dívida pública cresce mais depressa que o PIB, a base da arrecadação de tributos, sugerindo que — se deixada sem controle — em algum momento se tornará impagável, isto é, o serviço da dívida consumirá mais do que o governo estará disposto a pagar dados os demais gastos que lhe cabem.
Quem empresta dinheiro para o governo sabe disso. Não se sabe exatamente qual o limite que o gestor público tolera, mesmo porque alguns toleram mais, outros menos. De qualquer forma, não é possível acumular dívidas indefinidamente.
Sim, é bem verdade que — de acordo com algumas teorias exóticas que ganharam tração há algum tempo, e que perderam qualquer vestígio de credibilidade quando o mundo passou por um surto inflacionário que diziam ser impossível — o governo brasileiro deve em moeda local, o que impediria o calote puro e simples. Bastaria emitir a moeda para pagar a dívida. O que poderia dar errado?
Bom, não precisamos recuar até os anos 20 e 30 do século passado, quando tal estratégia foi posta em prática por vários países europeus, nem mesmo à experiência do Zimbábue no período mais recente.
“Dado que há uma eleição a vencer, como foi com o teto, o futuro do arcabouço fiscal está ameaçado”
Basta lembrar o que ocorreu quando um país rico, no caso o Reino Unido, formulou uma proposta orçamentária desastrosa. A libra perdeu quase 10% de seu valor num único mês e a taxa de juros dos títulos britânicos de dez anos saltou quase 1,5 ponto percentual no mesmo período. Foi praticamente um experimento natural da tese de que dever em sua própria moeda daria ao governo poder quase infinito para qualquer estripulia fiscal. No caso, a tese foi sonoramente rejeitada e, apenas revertendo rapidamente o curso, o Tesouro britânico conseguiu evitar crise ainda maior.
Enquanto a reversão de curso foi possível no caso em questão, a longa luta do Brasil com seus desequilíbrios fiscais não nos permite o mesmo caminho.
Pelo contrário, nosso orçamento é caracterizado por enorme rigidez. De cada 1 real gasto pelo governo federal, o Tesouro tem poder discricionário sobre 7 centavos. Todo o resto já está carimbado para previdência, folha de pagamento, programas sociais, pisos de saúde e educação, emendas do Congresso etc. Tais despesas obrigatórias crescem seguindo regras próprias, em alguns casos a demografia do país e, na prática, mais velozmente do que o permitido para o conjunto das despesas totais pelo arcabouço fiscal criado em 2023 para substituir o teto de gastos. O resultado, previsível, é que mesmo os 7 centavos não estão garantidos para os próximos anos.
Dado que há uma eleição a vencer, o futuro do arcabouço se encontra ameaçado, como ocorreu com o teto de gastos: entre seguir a regra e tentar a reeleição aumentando a despesa, a história sugere que a segunda opção será sempre a vencedora.
A alternativa de elevar receita já foi testada e fracassou. Apesar do aumento da carga tributária, o gasto sempre arrumou um jeito de crescer ainda mais, repondo o problema mais cedo ou mais tarde.
Não resta dúvida de que já passamos do momento de impor algum controle à despesa pública. Sobram, no entanto, dúvidas sobre a disposição de fazê-lo numa escala que evite um sério problema de endividamento nos próximos anos.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921