O governo federal contabilizou déficit primário de 230 bilhões de reais no ano passado, equivalente a 2,1% do PIB. Corrigido pela inflação, é o maior desde que começamos a registrá-lo, exceto, é claro, pelo resultado de 2020, o ano da pandemia.
Não faltou quem tentasse dourar a pílula, chegando ao paradoxo de afirmar que o enorme desequilíbrio do ano passado refletia, na verdade, “a arrumação da casa” (não quero nem pensar o estado da casa em que o responsável pela opinião vive). A própria Secretaria do Tesouro (STN) alimentou esse mito no material de divulgação do resultado de dezembro, deduzindo dele o desembolso realizado naquele mês relativo aos precatórios atrasados por causa da malfadada emenda constitucional de 2021 que instituiu um limite ao pagamento dessas despesas.
Segundo a STN, como foram desembolsados 92,4 bilhões de reais em dezembro referentes a tais gastos, tendo em vista a decisão do STF que considerou inconstitucional a referida emenda (não me pergunte), o resultado anual teria sido, na verdade, um déficit de 144 bilhões. Essa conta é fajuta.
Na verdade, os 92,4 bilhões dizem respeito a precatórios não pagos desde o final de 2021, ou seja, em 2022, mas também em 2023. Embora a STN tente empurrar a responsabilidade do gasto em dezembro para o governo anterior (que tem, sim, culpa no cartório, por ter proposto casuisticamente a tal emenda), as despesas com precatórios não pagos em 2023 teriam que ser contabilizadas no resultado de… 2023.
Quando da promulgação da emenda em 2021 a Consultoria de Orçamento da Câmara estimava que cerca de 43,5 bilhões não seriam pagos em 2022. Uma boa aproximação, portanto, sugere que perto de metade dos 92,5 bilhões desembolsados em dezembro refere-se a 2022 (logo, a metade restante teria que ser paga em 2023).
“O certo, nas contas do déficit fiscal de 2023, seria descontar só metade do valor dos precatórios”
Não faz, portanto, sentido deduzir 92,4 bilhões do déficit do ano passado, mas metade deste valor, já que a outra metade se materializaria de qualquer jeito em 2023.
Em números, o déficit de 2023 teria atingido perto de 190 bilhões de reais; já em 2022, ao invés de um superávit de 55 bilhões de reais, teríamos um superávit na casa de 12 bilhões de reais. De uma forma ou outra, uma deterioração impressionante das contas públicas no ano passado.
À parte a piora do resultado, a forma como se concretizou não sugere coisa boa para o futuro. Houve aumento expressivo das despesas obrigatórias, isto é, gastos que se repetirão (isto se não crescerem ainda mais) de um ano para outro, reduzindo a já minúscula flexibilidade do orçamento federal.
Isso explica o apetite do governo por novas receitas, mas a verdade é que o problema não pode ser resolvido dessa forma. A persistir o crescimento da despesa obrigatória, até o frouxo “novo arcabouço fiscal” não dará conta, a menos que estejamos dispostos a ver a carga tributária também crescer indefinidamente (acreditem: não é uma boa ideia).
Independentemente de atingirmos (ou não, como temo) a meta fiscal de 2024, a encrenca é bem maior do que supõe o afã dos bajuladores.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879