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Cesariana: por que ela é uma epidemia no Brasil

No último alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre os países que fazem cesarianas em excesso, o Brasil aparece como o único lugar do mundo com mais da metade dos nascimentos feitos por esse método: 53,7%. Especialistas consultados pelo site de VEJA revelam que a razão por trás disso é um sistema de atenção ao parto construído ao longo de três décadas e explicam o que pode - e deve - ser feito para mudar esse quadro

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h29 - Publicado em 19 abr 2015, 11h21

No último dia 10, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um alerta sobre o excesso de cesarianas desnecessárias em países como o Brasil, o líder disparado nesse tipo de parto. De acordo com o ranking da OMS, somos o único país do globo a ter mais da metade de todos os nascimentos feitos por essa cirurgia: 53,7%. Apenas o Chipre chegou próximo a essa colocação em 2007, quando apresentava 50,9% de crianças nascidas por cesariana.

Esse procedimento cirúrgico, que parece ter sido feito pela primeira vez com sucesso em 1500 por um castrador de porcos suíço que abriu a barriga da mulher que enfrentava dias de um doloroso trabalho de parto, é um método que tornou os nascimentos mais seguros e menos sofridos em certo número de casos em que há risco para mães e bebês. Em todo o mundo, ele é usado quando o parto normal pode levar à morte da gestante ou da criança. No Brasil, contudo, a cesariana é uma regra. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, 84% dos brasileiros que vêm ao mundo na rede particular nascem dessa forma. Na rede pública, são 40%. Segundo a OMS, a porcentagem adequada gira em torno dos 15%. Na Finlândia e na Holanda é de 17%, na França, de 21%.

Um dos argumentos usados com maior frequência para explicar os altos números é que a brasileira não quer sofrer. De fato, o parto normal no Brasil submete a gestante a dores desnecessárias. Métodos que são comuns em outros países são ignorados no país. Nos hospitais, por exemplo, o parto costuma ser feito com a mulher deitada, o que dificulta a saída do bebê: as posições recomendadas são de agachamento ou mesmo em pé, porque a força da gravidade ajuda o processo. Além disso, é regra a utilização da ocitocina, que aumenta a dilatação e as doloridas contrações.

O parto normal, portanto, não precisaria ser sinônimo de sofrimento. Mas um modelo de saúde implantado no Brasil há mais de três décadas em tudo induz à cesariana – uma operação que de fato é rápida e prática, mas também é cara e eleva em até 120 vezes as chances de problemas respiratórios para o recém-nascido e em três vezes o risco de morte materna.

“Desde o pré-natal, o procedimento brasileiro é centrado no médico e não em uma equipe multidisciplinar, com enfermeiras obstetras, como acontece em todo o mundo. Em qualquer outro lugar, o médico só é acionado quando algo anormal acontece. Aqui, fatores como o pagamento da cirurgia, as informações a respeito dela e os preconceitos da gestante levam à cesariana. Além de um problema de saúde pública, essa operação se tornou uma questão cultural”, afirma a médica obstetra Suzanne Serruya, uma das diretoras da OMS no Brasil.

Desde 2014, o governo tem editado normas e resoluções para evitar o que chama de “epidemia de cesarianas”. Entre todas, a iniciativa mais promissora, que entra em vigor esse mês, é uma parceria entre o Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Hospital Israelita Albert Einstein e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), organização sem fins lucrativos de Massachusetts, nos Estados Unidos. Até outubro do próximo ano, 42 hospitais selecionados na rede pública e privada receberão um projeto-piloto que, por meio da formação de equipes multiprofissionais, buscará promover o parto normal sem intervenções. Em três hospitais brasileiros onde ele foi testado nos últimos anos, o percentual de partos naturais mais que dobrou e as admissões em UTI neonatal caíram. A esperança do governo é que atuando com hospitais, profissionais e gestantes de uma só vez, a cesariana pare de aumentar.

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“A cesariana salva vidas. Mas é uma unanimidade científica que o nascimento é feito por parto normal e a cirurgia deve ser uma exceção, por todos os riscos que sempre comporta. Não há nenhuma evidência de que a cesariana agendada para a 38ª. semana de gestação, como ocorre com tanta frequência no Brasil, traga qualquer benefício. Se houver um pacto entre todos os setores interessados, é possível que, lentamente, seu alto número se reduza e o parto deixe de ser essa experiência traumática”, diz Suzanne.

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Morte materna – Para um país ver diminuir a mortalidade materna e de recém-nascidos, o aceso à cesariana é fundamental. Até uma taxa em torno de 15% há uma relação inversamente proporcional entre o número de cesarianas e a morte de gestantes e bebês. No entanto, estudos feitos desde a década de 1980 não encontraram evidências de que, acima dessa porcentagem, a mortalidade continue em queda. Ao contrário, ela costuma ser mais alta. Entre 2000 e 2013, as taxas de mortes por complicações na gravidez e parto diminuíram 1,7% ao ano no Brasil, enquanto a redução média mundial foi de 3,1% ao ano, de acordo com a OMS.

Dores do parto – A tendência a tornar a cesariana uma unanimidade brasileira parece ter se concretizado no país a partir dos anos 1980, quando os avanços científicos permitiram que a cirurgia, feita em seus primórdios para salvar crianças quando as mulheres não tinham chances de sobreviver, se tornasse segura e indolor.

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Uma das explicações para a tendência, revelada pelo estudo Nascer no Brasil, é que o parto natural no país se tornou desnecessariamente doloroso. Publicado no ano passado pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, esse levantamento pioneiro mapeou a situação de nascimento em todas as regiões brasileiras. Por meio de entrevistas com 23 894 mulheres entre 2011 e 2012, os pesquisadores descobriram que quase 70% delas preferia parto natural no início da gestação. Ao fim dos nove meses, o número se inverte. Um terço das mulheres que optou pela cesariana desde o início da gravidez disse que a principal razão para a escolha era medo da dor.

“O parto normal é desnecessariamente mais doloroso e arriscado no Brasil. Ele é agressivo, feito com técnicas como a episiotomia [corte no períneo para ampliar o canal de parto], a injeção de ocitocina, que provoca contrações mais dolorosas e, normalmente, a negação do acompanhante, o que potencializa a dor no momento do nascimento. Assim, a cesariana se torna uma salvação. É a melhor alternativa para escapar desse cenário, oferecendo conforto e cuidado”, afirma a médica obstetra Carmen Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e uma das coordenadoras do levantamento.

De acordo com a pesquisa, apenas 5% das mulheres teve um parto natural sem qualquer intervenção – na Grã-Bretanha, esse número é de 40%. Das que tiveram parto natural, 53,5% das mulheres passou por episiotomia, técnica criada nos anos 1920 e bastante questionada pelos obstetras atualmente. Um terço delas recebeu ocitocina, hormônio que promove as contrações e a dilatação do canal vaginal e apenas 20% se beneficiou da presença do acompanhante durante a internação.

“Organizamos todo um sistema em torno da cesariana, e não há muitas opções para sair dele. No sistema público, há esse parto normal violento; no privado, quase nove chances em dez de fazer uma cesariana. No entanto, não discutimos as indicações e os riscos dessa cirurgia”, explica Carmen.

Sistema de saúde – Até por volta dos anos 1970, os nascimentos costumavam ser responsabilidade da parteira (hoje chamada obstetriz) ou da enfermeira obstetra. Os médicos só surgiam durante o trabalho de parto se houvesse alguma complicação. Esse sistema se modificou quando o sistema público de saúde brasileiro passou a se estruturar.

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“Nessa época, para receber o pagamento pelo parto, o profissional deveria estar presente a ele. A partir desse momento, o médico obstetra passou a fazer os partos e estruturamos uma cultura ‘medicocêntrica’ para o nascimento. Desapareceram as equipes profissionais e os nascimentos passaram a ser feitos no hospital. No entanto, até hoje, não há médicos o bastante para tantos nascimentos. Por isso, é comum que ele faça um parto atrás do outro”, explica Etelvino Trindade presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Nessa fila, o longo e trabalhoso parto normal, que pode levar um dia, começou a perder espaço e leitos. Um levantamento divulgado em setembro de 2013 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) apontou que 3 431 leitos obstétricos do Sistema Único de Saúde foram fechados desde 2010. Em São Paulo, nos últimos cinco anos, 17 maternidades fecharam.

“A cesariana leva uma ou duas horas para ser feita. Com poucos profissionais e poucos leitos, a única forma de se garantir uma vaga em um hospital para ter o filho é marcar hora. Só se pode fazer isso com a cesariana. Sabe-se quando começa e termina. Assim, garante-se a vaga e o médico que a gestante conhece e em quem confia, sem o perigo de que ele esteja do outro lado da cidade ou fazendo qualquer outra coisa no momento provável do nascimento”, diz Trindade. “Além disso, por ser mais rápida, a cesariana se torna um procedimento mais lucrativo que o parto normal. Em vez de ficar de plantão ao lado de uma gestante, podem-se fazer várias cesarianas. É todo um sistema estruturado que constrange para o procedimento cirúrgico.”

Riscos – Apesar de permitir nascimentos seguros em determinadas circunstâncias, a cesariana oferece uma série de riscos. Uma análise publicada em 2010 que avaliou o impacto da cirurgia, quando feita sem indicação médica, revelou que ela aumenta a admissão em UTI, a morte materna e o risco de hemorragias. Nas gestações subsequentes foi encontrada uma maior relação entre a cesariana e o desenvolvimento de uma placenta anormal.

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Para as crianças, há evidências científicas da relação entre o método e problemas respiratórios. Os bebês que nascem por cesariana têm risco maior de ter asma e doenças relacionadas ao trato superior. Além disso, são a maior parte dos internados em UTI neonatal.

Novos estudos têm também discutido os efeitos a longo prazo do nascimento por cesarianas. Foi identificada maior ocorrência de síndrome metabólica, diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares e obesidade. Os cientistas descobriram, nos últimos anos, que o parto natural é um importante meio para fazer as crianças desenvolverem um microbioma saudável , nome dado ao conjunto de bactérias que compõe o nosso corpo e têm papel importante na imunidade e prevenção de doenças.

Alternativas nacionais – Para evitar esses problemas, o projeto-piloto do Ministério da Saúde e da ANS que começou a ser implantado neste mês busca intervir no modelo de saúde para reduzir a taxa de cesarianas brasileira. O programa é inspirado na experiência de três hospitais particulares do interior de São Paulo que, em parceria com o IHI, conseguiram aumentar a quantidade de partos normais sem intervenções.

A estratégia foi formar equipes de plantão para atender as gestantes em trabalho de parto e, assim, desvincular o pré-natal e o parto do médico. Ele se tornou responsabilidade da enfermeira obstetra. O médico só foi acionado para a gravidez de risco ou para as que necessitaram intervenções cirúrgicas. Além disso, o pagamento deixou de ser feito por cesariana e passou a ser feito por plantão e foram introduzidos métodos não-farmacológicos para o alívio das dores do parto (bolas ou banheiras). As gestantes receberam informações sobre os prós e contras dos partos normal e cesariana, passados pelos profissionais de saúde.

No Hospital e Maternidade Santa Isabel, que tinha todos os partos feitos com a operação, o trabalho começou em outubro de 2012. Em um mês, com a mudança no honorário médico, o número de partos normais aumentou em 10%. Com a contratação das enfermeiras, a taxa subiu para 20%. Nove meses depois, o número estava em 40% e a utilização de UTI neonatal diminuiu em 60%.

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“No início, as gestantes se sentiram um pouco incomodadas com esse novo modelo. Mas, em pouco tempo, percebemos que a maior preocupação delas era com a segurança do bebê. A vinculação com o médico não se mostrou fundamental – é essa dependência que induz a tantas cesarianas”, explica o médico Paulo Borem, representante do IHI no Brasil.

Os outros dois hospitais alcançaram taxas semelhantes e a expectativa é que, ao longo do tempo, o trabalho consiga derrubar a taxa de cesarianas para 30%. A metodologia utilizada pelo Ministério da Saúde testará ainda dois outros modelos de equipes profissionais por 18 meses. Ao fim, os resultados serão analisados por uma ampla equipe de pesquisadores brasileiros para que o modelo mais efetivo possa ser utilizado nas redes particulares e pública no Brasil.

“É preciso haver um meio termo entre o parto normal doloroso e a cesariana. Não conhecemos no Brasil um nascimento natural, com boas técnicas de alívio da dor e cuidados médicos. Essa mudança deve passar pelas universidades de medicina e enfermagem, que formam os profissionais, e pela transformação radical no sistema de saúde. A cesariana deve ser usada sem abuso: é um método necessário, que jamais deve ser uma escolha”, diz Silvana Granado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.

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