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Universalização da educação infantil: solução ou armadilha?

"Os ganhos para o país com a eliminação do analfabetismo serão muito maiores do que aqueles oriundos da universalização da pré-escola. Essa é a batalha que temos à nossa frente. Admitir distrações é quase um crime"

Por Gustavo Ioschpe
13 mar 2011, 08h34

Os últimos anos têm visto o florescimento de uma vasta literatura científica, multidisciplinar, que demonstra o incrível poder que os primeiros anos de vida de uma pessoa têm na determinação de uma série de fatores – da saúde à riqueza – de sua idade adulta. À medida que a pesquisa avança, nota-se que a idade para o surgimento de características importantes vai retrocedendo: sabe-se hoje que eventos da vida intrauterina têm impactos que perduram até a morte.

Esse avanço do conhecimento vem embasando uma mudança de políticas públicas, especialmente nos países desenvolvidos, no sentido de intervir cada vez mais cedo, com especial atenção às crianças de famílias mais vulneráveis. O primeiro esforço em muitos países tem sido começar o processo educacional já na pré-escola, atendendo crianças de 4 e 5 anos. O impacto positivo da pré-escola é amparado por literatura científica extensa. Estudos feitos no Brasil demonstram que alunos que cursaram a pré-escola têm desempenho acadêmico melhor do que aqueles que não a cursaram. Essa diferença persiste por todas as séries, e aparece também em exames padronizados como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Alunos que têm melhor desempenho tendem a gostar mais da escola e, portanto, são menos propensos a abandoná-la. Alunos que cursaram a pré-escola têm maior probabilidade de completar o ensino superior. O impacto positivo vai além da vida escolar e se estende à idade adulta. Um estudo feito no Brasil mostra que aqueles que passaram pela pré-escola têm salário 16% mais alto do que alunos que não a cursaram. Estudos americanos demonstram que a frequência à pré-escola aparece associada à diminuição das taxas de criminalidade.

Por todos esses benefícios, vários países, entre eles o Brasil, vêm cursando o caminho da universalização da educação infantil, especialmente na idade da pré-escola – antes dela vem a creche, cujos efeitos educacionais aparentam ser nulos. O Brasil avançou bastante nesse terreno. Aproximadamente 78% das crianças brasileiras estavam na pré-escola em 2009. Usando o critério da Unesco, que permite fazer comparações internacionais, tínhamos 65% de taxa de matrícula, número elevado, comparável ao de vários países líderes em educação.

Há, porém, uma diferença fundamental entre o esforço de universalização da educação infantil no Brasil e nos países desenvolvidos, onde esse movimento se deu depois de satisfeitas todas as necessidades basilares de sua educação escolar. No Brasil ele está sendo usado (e vendido à opinião pública) como a bala mágica para todas as deficiências do sistema educacional, em especial as relacionadas à alfabetização.

A experiência internacional demonstra claramente a falácia desse argumento. Nenhum dos países que deram saltos educacionais importantes nas últimas décadas teve a universalização da pré-escola como conquista anterior a êxitos na alfabetização e no ensino de modo geral. Em 1975, por exemplo, a taxa de matrícula na pré-escola na Finlândia era de 32%, na Noruega, de 13%, na Coreia do Sul, de 3%, e na Inglaterra, de 21%. Mesmo em 1980, quando muitos desses países já começavam a dar importantes sinais da melhoria de sua educação, nenhum deles punha nem metade da população na pré-escola. Na Finlândia, até há pouco o país com o melhor sistema educacional do mundo, a taxa de matrícula na pré-escola ainda em 1990 era de 33%. Vem da China o exemplo mais claro de que a pré-escola é útil, mas não chega a ser condição indispensável de sucesso para o funcionamento do sistema educacional como um todo. Em 2008, a taxa de matrícula de crianças chinesas na pré-escola era de 44%. Um ano depois, a China já liderava mundialmente o exame Pisa, que mede o conhecimento dos jovens aos 15 anos, sem tempo hábil, portanto, para que se verificasse algum benefício da pré-escola nesse fenomenal desempenho.

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A expansão da pré-escola vem ganhando força no Brasil também porque os políticos gostam de inaugurar escolas e anunciar a criação de vagas. “Mas, se os efeitos da pré-escola são positivos, que mal há nisso?” O argumento é bom, mas pode ser ruinoso se expandir a pré-escola significar deixar de lado as lutas pela melhoria do ensino fundamental. A realidade mostra que existe esse risco. Em qualquer organização da iniciativa privada, por exemplo, há sempre dezenas de projetos com retorno positivo que podem ser perseguidos, mas as organizações exitosas implementam apenas um número muito pequeno dessas oportunidades. As escolhas precisam ser feitas, por uma questão de estratégia e foco. Nem sempre há tempo e/ou recursos humanos suficientes para fazer tudo – e tudo benfeito. É preciso, então, priorizar aquilo que é mais importante e dá maior retorno. As organizações públicas e educacionais têm as mesmas limitações que qualquer organização humana, mas, no Brasil, acham que podem (e devem) fazer tudo ao mesmo tempo, e que conseguirão fazer tudo bem. É um engano.

Precisamos fugir da armadilha da expansão do ensino para o nível infantil por duas razões. A primeira é conceitual: há mais de dez anos, com a universalização do acesso ao ensino fundamental, nosso problema maior deixou de ser a quantidade (matrículas, vagas ou falta de verbas) para se tornar a qualidade da educação, que se traduz em melhoria da aprendizagem. Mas as reformas que produzem qualidade requerem esforços, brigas com as corporações do ensino, interferência nas universidades, fim do loteamento político de cargos. Enfim, uma série de medidas que são tão importantes para o povo brasileiro quanto desagradáveis para nossos políticos e muitos professores e funcionários escolares incompetentes. Por isso, não conseguimos ainda, como país, fazer essa migração e focar na qualidade. Assim, continuamos aparecendo nas últimas posições de vários indicadores globais de educação. Já há relativamente pouco que se possa fazer, quantitativamente, pelo ensino fundamental. Se, como sociedade, conseguirmos fazer com que nossos líderes se atenham a esse nível e não escapem das batalhas que importam, teremos verdadeiros e importantes avanços. Se, porém, perdermos o foco e deixarmos que as atenções se voltem para a tenra infância (hoje os de 5 anos, daqui a pouco os de 3…), perderemos mais dez ou quinze anos até finalmente descobrirmos que, ops!, apesar de todos os progressos na pré-escola, nossos alunos continuam chegando à 4ª série sem saber ler nem escrever.

A segunda razão é objetiva. Temos uma enorme e urgente batalha a travar, quase vergonhosa: precisamos alfabetizar 100% de nossas crianças até a 2ª série. Essa precisa ser uma obsessão, pois sem essas fundações sólidas não há como erguer o edifício do conhecimento. O que a experiência internacional mostra é ser perfeitamente viável – aliás, é o normal – alfabetizar crianças que não passaram pela pré-escola, já na 1ª série. Os ganhos para o país com a eliminação do analfabetismo serão muito maiores do que aqueles oriundos da universalização da pré-escola. Essa é a batalha que temos à nossa frente. Admitir distrações é quase cometer crime de guerra.

P.S. – Faltou citar, no artigo do mês passado, uma área importante na qual os pais podem ajudar o desempenho escolar de seu filho, que é o aleitamento materno. Um estudo com alunos de 10 anos de idade que acaba de ser divulgado na Austrália mostra que aqueles que tiveram aleitamento materno por seis ou mais meses apresentavam desempenho acadêmico superior. Esse e os outros estudos mencionados neste artigo estão disponíveis em twitter.com/gioschpe.

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