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A cidade da Olimpíada é refém do automóvel

Queda de passarela na Linha Amarela, uma semana depois da paralisação dos trens, mostra mais uma vez que o Rio de Janeiro não tem planejamento para reagir a situações inesperadas no transporte de passageiros. "A cidade está no limite", adverte Paulo Cezar Ribeiro, da Coppe

Por João Marcello Erthal e Daniel Haidar
Atualizado em 10 dez 2018, 11h19 - Publicado em 29 jan 2014, 07h24
Pela Linha Vermelha, passam 139.000 carros diariamente: gases veiculares são responsáveis por 77% da poluição atmosférica no Rio

Pela Linha Vermelha, passam 139.000 carros diariamente: gases veiculares são responsáveis por 77% da poluição atmosférica no Rio (VEJA)

Vá de bicicleta, dizem os ambientalistas. Use o transporte público, pedem as autoridades, principalmente em grandes eventos. Os apelos são irresistíveis em algumas cidades do mundo, onde o planejamento urbano, as vias especiais e o respeito à mobilidade norteiam os investimentos de longo prazo. Mas, no Rio, cidade da Olimpíada de 2016 e uma das sedes da Copa do Mundo deste ano, proprietários de automóveis não hesitam: entre o metrô superlotado, o trem que obriga o passageiro a andar sobre os trilhos ou ficar engarrafado em ônibus inseguros e desconfortáveis, preferem o “congestionamento privado”, dentro do próprio carro. O resultado desse convite ao transporte individual é o aumento progressivo dos tempos de viagem e situações como a da manhã desta terça-feira, na Linha Amarela, quando a colisão de um caminhão com uma passarela matou cino pessoas, feriu outras quatro e transformou as pistas de uma via expressa em um gigantesco estacionamento sob o sol de 40 graus. Sem um plano de emergência capaz de reordenar o tráfego, a todo momento os cariocas – os de maior sorte – têm engarrafamento com vista para o mar.

Pedir para alguém deixar o carro em casa, nessas condições, é ingenuidade. Usando mais seus conhecimentos técnicos, mas também a experiência como cidadão que se movimenta no Rio, o professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Paulo Cezar Ribeiro aponta o desencontro entre o que o poder público pede ao cidadão e o que oferece em troca. “Não se consegue, de forma exitosa, transferir à força as pessoas do automóvel para o transporte público. Quando se desestimula o uso do carro, mas não há ônibus e trens eficientes, o dono do automóvel vai de táxi. Só muda a cor do engarrafamento. Londres, Paris e Nova York convencem as pessoas a deixar o carro em casa, principalmente, porque têm trens e metrô com qualidade, e permanentemente sendo aprimorados”, compara.

O excesso de carros e táxis complica a vida de quem, não por opção, mas por necessidade, viaja nos coletivos. De acordo com o site da prefeitura, as quarenta vias de maior movimento (entre elas Avenida Brasil, linhas Vermelha e Amarela, Auto-Estrada Lagoa-Barra e os túneis) recebem 10 milhões de veículos por dia – obviamente, alguns veículos passam por várias dessas vias. O Estado tem licenciados, segundo o Detran-RJ, 4.265.781 automóveis, 940.154 motocicletas, 47.705 ônibus e 686.475 caminhões. Desses 4,2 milhões de automóveis, são 33.000 táxis, de acordo com a Secretaria Municipal dos Transportes. No município do Rio há 8.716 ônibus, que dividem espaço com outros 5.808 coletivos intermunicipais, que transportam trabalhadores e estudantes de outras cidades para a capital. Ao todo, 6.867.243 passageiros por dia, em média, em 4 milhões de viagens.

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O calor, os horários irregulares, a limpeza e a cobertura irregular dos coletivos são reclamações constantes – foram, inclusive, estopim da revolta de junho, quando os protestos de rua se espalharam pelo país. Há ainda o perigo de encontrar o ladrão. Dados divulgados nesta terça-feira pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), referentes a outubro de 2013, indicam que os roubos em coletivo cresceram 67,7%, em relação ao mesmo período do ano anterior. Foram, em outubro, 587 assaltos registrados, ante 350 no ano de 2012. Estes são apenas os casos em que a vítima se dispôs a ir a uma delegacia e perder algumas horas para formalizar a queixa.

Nos trens a situação não é muito diferente. Por dia, os trens metropolitanos carregam cerca de 600.000 passageiros. O metrô, outros 690.000. Na semana passada, os passageiros de trens ficaram 13 horas sem o serviço, quando uma composição da Supervia – a campeã em reclamações, entre os usuários de transporte público – descarrilou, atingiu a rede aérea e paralisou totalmente o sistema. Num episódio que entrou para os grandes vexames da cidade, o metrô parou no dia da celebração de abertura da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), com presença do papa Francisco, em junho de 2013. Um detalhe: o metrô era o transporte recomendado para os milhares de peregrinos que estavam na cidade.

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“O sistema público e coletivo no Rio é ruim, ineficiente. Os ônibus, mesmo em faixas exclusivas, também ficam presos nos engarrafamentos. Os trens estão sucateados, o metrô é de um trajeto só, para duas linhas, e em breve serão três. É evidente que o Rio não tem uma equipe pensando transportes sistematicamente, considerando que, atualmente, qualquer probleminha para a cidade”, alerta Ribeiro.

O Rio está, como define o especialista da Coppe, “no talo”, no limite, e sem condições de reagir aos imprevistos. Uma situação como a desta terça-feira, durante a Olimpíada, realizaria o sonho dos mascarados do Black Bloc: não vai ter Olimpíada, ou Copa, por pelo menos um dia. A Linha Amarela é uma artéria vital do sistema viário, principal conexão entre o Centro e a Zona Oeste, cortando quatorze bairros e com fluxo diário de 220.000 veículos. As competições nas arenas localizadas na Barra da Tijuca precisariam, no mínimo, ser atrasadas em algumas horas.

Para garantir a Copa e a Olimpíada, a principal medida viária, ironiza o professor, é a seguinte: férias escolares. Com o alívio de 15% a 20% na pressão sobre o trânsito, abre-se caminho para as delegações, os turistas e jornalistas que virão. A ausência de um plano de emergência, de fato, não é exagero, nem coisa de quem “não quer a Copa”. Depois do segundo dia consecutivo de grande engarrafamento, e na segunda semana de paralisação forçada de uma parte vital do sistema de transporte, a Agência Reguladora de Transportes (Agetransp) decidiu pedir o que devia sempre ter existido: a criação de um plano de “contingência integrado entre os diferentes modais”. Uma reunião realizada á tarde, com participantes das secretarias de Estado da Casa Civil, de Transportes e das concessionárias Supervia, Metrô Rio e CCR Barcas, além da Secretaria Municipal de Transportes e da Fetranspor estabeleceu prazo de 30 dias para elaboração de um plano. Como nunca se fez nada parecido na cidade, é pouco provável que em um mês venha à luz um planejamento de fato.

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O plano de emergência é necessário. Mas é evidente que não é ele quem vai fazer o transporte público ser eficiente e atrativo o bastante para que o morador de um bairro prefira deixar o carro em casa e, assim, reduzir engarrafamentos, poluição, inchaço dos estacionamentos e todos os malefícios que o automóvel pode causar a uma cidade saturada. Como lembra Ribeiro, a tradição brasileira é de o governante só investir na obra que ele próprio possa inaugurar, o que manda para o limbo qualquer projeto superior ao prazo de dois mandatos, no máximo.

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A Olimpíada e a Copa, eventos sobre os quais pesam a responsabilidade de “deixar um legado”, são, também, compromissos que forçaram, ou no mínimo convidaram as autoridades a adotar uma espécie de atalho na gestão de mobilidade da cidade. Como lembra o especialista da Coppe, em 2005 foi feito o Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU) da capital, com dados de 2003 e 2004. Pouco depois, em 2009, o Rio venceu a disputa para receber os Jogos Olímpicos. O que se decidiu, a partir daquele ponto, foi ignorar o que dizia o planejamento de longo prazo e adotar soluções orientadas para a localização das arenas, alojamentos e as necessidades dos eventos esportivos – que nem sempre coincidem com a necessidade de expansão da cidade. Surgiram, como grandes soluções, os corredores expressos de ônibus (BTR) Transcarioca, Transolímpica e Transoeste.

Em transporte de massa, o planejamento, e a capacidade de reagir a situações imprevistas extremas, é a chave do sucesso e da segurança. Quando um sistema tem tantas “cabeças” pensando – ou não – e agindo, um erro mínimo pode afetar muita gente. A rigor, o caminhão que derrubou uma passarela de 94 toneladas sobre três carros, causando a morte de quatro pessoas – entre elas dois pedestres que estavam sobre a estrutura – não poderia passar pela Linha Amarela naquele horário. O motorista, que disse estar consciente da infração de trânsito, mas que não sabia do movimento na caçamba, percorreu os 3 quilômetros entre o acesso 2 e a passarela no acesso 4 em aproximadamente 2 minutos – tempo curto demais para ser impedido de qualquer coisa. O acidente aconteceria no Rio ou em Londres, onde foi realizada a Olimpíada de 2012. Mas é improvável que os ingleses corram o risco de enfrentar a mesma situação sem um planejamento de urgência. E dificilmente tanta gente estaria, naquele momento, usando o carro de passeio para se deslocar.

A armadilha que o sistema de transporte do Rio – e de grande parte das maiores cidades brasileiras – precisa desarmar passa, necessariamente, pela redução do número de carros nas ruas, com progressiva oferta de transporte público de qualidade. O Rio se destaca negativamente entre as metrópoles por experimentar uma involução acelerada na qualidade de vida de quem enfrenta o trânsito. Um levantamento divulgado em novembro pela empresa de GPS Tom Tom constatou, para desespero dos cariocas, que os engarrafamentos à beira-mar atualmente são piores do que os da capital paulista. O levantamento considera uma proporção entre os tempos de viagem nos horários de fluxo leve com os períodos de pico, em estradas e vias urbanas. A pior cidade do mundo nesse quesito, segundo o estudo, é Moscou, com índice de 65% de tempo em congestionamento, seguida por Istambul, com 57% e pelo Rio. São Paulo ficou na sétima posição, com 39%. “Não existe mágica. Se o transporte coletivo for ruim, os automóveis vão para as ruas”, resume Ribeiro.

Passageiros caminham na linha férrea – Março de 2013

Passageiros se arriscam caminhando na linha férrea. O registro foi publicado no Youtube por um usuário.

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Passageiro filmou trens de portas abertas e superlotados na estação de Bangu.

Trens parados na Zona Oeste

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Tumulto na Central do Brasil

Passageiros se abrigam na Central do Brasil. As imagens de setembro de 2012 são do dia em que houve um quebra-quebra nas estações.

Passageiros protestam contra paralisação dos trens – fevereiro de 2012

Passageiros protestam contra paralisação dos trens.

Trem pega fogo – Setembro de 2012

Usuário da Supervia filma chamas sob um vagão da Supervia.

Tumulto e desinformação em dia de trens parados – Fevereiro de 2012

Passageiros buscam informações em dia de paralisação de trens, em fevereiro de 2012.

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