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Índice Uber (ou como medir o apreço ou a aversão pela livre-iniciativa)

Países mais corruptos, mais burocratizados e com maior interferência do Estado tendem a resistir a inovações como o aplicativo de caronas pagas. Para medir essa resistência, VEJA criou o "Índice Uber"

Por Da Redação
7 ago 2015, 22h31

O Uber provoca resistência por onde passa. Em quase todos os 58 países em que o aplicativo opera, há ou houve protestos clamando por sua proibição. Se você ainda não foi apresentado a ele, um resumo: o Uber é um serviço que conecta, por meio de um aplicativo, motoristas profissionais ou não a passageiros que precisam deles. Ou seja, é uma alternativa de transporte que dispensa a necessidade de intermediários (sejam eles sindicatos ou governos) e controles oficiais de qualidade, já que os próprios usuários se encarregam da avaliação permanente do serviço. Com tantas vantagens, por que então essa grita em torno dele?

Porque, como toda inovação disruptora no curso da história, o Uber bate de frente com setores que veem vantagens na manutenção de métodos arcaicos. No caso, os incomodados são os taxistas, que depararam com o que ameaça se tornar um substituto mais moderno de seus serviços – ou ao menos uma alternativa a eles. Por isso, manifestam-se, às vezes com violência: já são diversos os registros de agressões a motoristas e clientes do Uber. Mas o fim dessa história é conhecido. No passado, avanços como a máquina de tear (o gatilho da Revolução Industrial), ou mesmo a eletricidade, sofreram com movimentos de resistência. Em todos os casos, prevaleceu o bom-senso, com vitória do progresso, e não da estagnação.

Antes que isso ocorra, porém, o Uber terá de enfrentar uma batalha dura. O aplicativo provocou discussões inflamadas desde seu lançamento, em 2009, em São Francisco, centro da meca tecnológica do Vale do Silício. Houve protestos e tentativas, por parte dos taxistas, de lançar o serviço na ilegalidade. Em entrevista a VEJA, o estrategista político americano David Plouffe, que em 2008 foi coordenador da campanha do presidente Barack Obama e em 2014 assumiu como vice-presidente e, depois, conselheiro do Uber, definiu como natural a reação: “Toda regulamentação urbana foi feita antes de surgirem smartphones, tablets e aplicativos. Precisamos adaptar as leis, e o problema não é só com o Uber. Há, por exemplo, o Airbnb (pelo qual se alugam cômodos, casas e apartamentos para turistas). A legislação tem de correr atrás das novidades”.

Uber
Uber (VEJA)

​Nos Estados Unidos, país de tradição liberal, a luta não tem sido tão difícil. O ineditismo estimulou protestos como os que tomaram ruas de Nova York e da capital, Washington. As respostas dos governos municipais, porém, foram rápidas e ponderadas. Confrontadas com a inexistência de uma legislação específica para receber a startup californiana, 52 cidades criaram uma, oito já deram início ao processo e as demais sinalizam que seguirão o mesmo caminho (a exceção é o Estado de Nevada, historicamente corrupto e avesso a novidades). Nos EUA, é cada vez menos visível o estereótipo do taxista grosseiro, um tipo exagerado e não tão comum na vida real – magistralmente representado por Travis Bickle, o personagem de Robert De Niro no violento Taxi Driver, clássico de Martin Scorsese. Em vez dele, popularizou-se a figura do motorista que veste terno, oferece bala e água mineral aos passageiros, não faz caminhos mais longos para aumentar a tarifa e chega rápido, em carro novo, limpo e confortável.

A qualidade do serviço deve-se menos à tecnologia do que aos princípios em que se baseia o aplicativo. Assim que chama um carro do Uber, o cliente sabe quem é o motorista e qual a avaliação que ele recebeu dos outros passageiros – quem tem nota abaixo de 4,6 num ranking que vai até 5 fica impedido de trabalhar. O aplicativo permite ao cliente saber em quanto tempo será atendido, quanto custará o percurso e qual será a duração do trajeto, considerado o trânsito. Na Índia, está em testes um botão de alerta para avisar se o motorista cometer irregularidades. Além de os casos serem raros, é fácil solucioná-los. No mesmo minuto, sabe-se quem é o motorista e o que ele fez – e as autoridades são acionadas.

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O caso Uber é mais uma demonstração de que certos modelos de negócio, mesmo oferecendo óbvias vantagens, suscitam enorme resistência no mundo. Para mediar essa força que atravanca o progresso, VEJA criou o “Índice Uber”. Para isso, cruzou e somou dados que medem níveis de burocracia, corrupção e interferência estatal em vinte países. A conclusão a que chegou é notável. Nos países em que a burocracia é maior, o governo é mais corrupto e o Estado mais pesado, a reação ao aplicativo, seja na forma de protestos, seja na de proibições, foi maior. O inverso também se mostrou verdadeiro. Quanto menos frequentes são os registros de corrupção num país e mais leve a mão do Estado, menos problemas o Uber enfrenta para se estabelecer. Do lado dos resistentes à inovação estão, por exemplo, Brasil, Índia e China. No grupo dos que recebem a novidade com ponderação, ou de portas abertas, alinham-se Estados Unidos, Nova Zelândia e Japão. Como postou em seu perfil no Twitter o inglês Paul Graham, icônico empreendedor da indústria digital: “O Uber é tão obviamente uma coisa boa que é possível medir quão corruptas são as cidades pela intensidade com que tentam suprimi-lo”.

Há aparentes exceções à regra. Da turma que não é afeita a inovações, salta aos olhos a Alemanha, pouco corrupta ou burocrática, mas onde parte dos serviços do Uber é ilegal. A explicação: lá sobressaíram a força extrema de sindicatos e uma política de Estado benevolente (características típicas da maioria das nações europeias), que alimentaram protestos e levaram à proibição do aplicativo. Em outras palavras, ganhou o peso estatal. Entre os exemplos positivos, destaca-se o México. Apesar de tratar-se de um país de altíssimos níveis de corrupção e burocracia, no mês passado a capital, Cidade do México, foi a primeira da América Latina a regularizar o serviço. Segundo as novas regras, os motoristas pagarão 1,5% de imposto por corrida, deverão arcar com uma permissão anual de 100 dólares e, ainda, só poderão trabalhar com carros de preço mínimo de 12 650 dólares.

Mas do que tanto reclamam os taxistas? A maior queixa é que os motoristas do Uber não pagariam impostos nem (principalmente) a licença de táxi, o chamado alvará, no Brasil. O que não quer dizer que não sejam tributados. Diferentemente do que ocorre com taxistas, os profissionais brasileiros do Uber arcam com o IPVA do carro e não têm desconto na compra de automóvel. Além disso, pagam taxas por corrida efetuada, sendo que sempre é gerada uma nota fiscal digital, enviada ao cliente por e-mail, a cada trajeto realizado. Pela licença, não se paga, e é assim em quase todo o mundo, por não haver lei para tal. Isso porque a maioria das legislações de transporte urbano foi criada nos anos 60, antes do advento da internet. “São regulamentações que só faziam sentido nos velhos tempos, quando se entrava em um táxi sem saber se o motorista era perigoso, e o governo nos protegia”, disse a VEJA Catherine Tucker, professora de marketing do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Hoje, monitoramos a qualidade com a coleta de dados digitais.”

Logo, não é que se quer um mundo sem regras. Até porque, no Brasil, se as mesmas valessem para taxistas e para o Uber, os motoristas do aplicativo sairiam em vantagem, pagando menos para trabalhar, a médio prazo. O que se espera é que novas leis, modernas, surjam para receber inovações. E o Uber parece aberto a discussões. Por exemplo, aceitou de pronto as regras estabelecidas na Cidade do México e não deve se opor caso prevaleça a decisão da Comissão Trabalhista da Califórnia, nos Estados Unidos, que determinou que motoristas do app são funcionários, e não apenas parceiros, e, por isso, devem receber certos benefícios.

Só que o debate racional não tem prevalecido naqueles países de elevado “Índice Uber” e, portanto, corruptos e burocráticos. “Ao prover serviço de transporte remunerado de forma transparente, o Uber expõe os problemas do oligopólio de táxi”, analisou o cientista da computação paraibano Silvio Meira, do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas. “Lutar contra o Uber é defender o transporte de passageiros com charrete”, acrescentou. Os táxis brasileiros, e assim é também na maior parte do mundo, se baseiam em um sistema de licenças limitadas. Em São Paulo, um desses alvarás pode custar 200 000 reais, o que torna o acesso proibitivo para novatos, sem esse montante. O que ocorreu foi o estabelecimento de uma máfia, composta de empresários que detêm múltiplas licenças e as aluga, por diárias ilegais de 200 reais, aos taxistas.

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É esse grupo que tem instigado a maioria dos protestos nas quatro cidades nacionais em que o Uber está presente – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. A investida tem sido à força. Taxistas quebraram carros do Uber e vêm impedindo que eles cheguem a aeroportos. Em Brasília, por exemplo, na semana passada, fizeram um casal sair de um automóvel do Uber e o motorista pegar as malas e transferi-las para um táxi. Os clientes foram obrigados a utilizar esse modo de transporte para seguir viagem. “Nos Estados Unidos, o serviço começou, houve debate racional, seguido de regulamentação”, analisa o advogado Ronaldo Lemos, um dos mentores do Marco Civil da Internet brasileira. “O que me preocupa é que aqui a reação tem sido só violenta. O que isso revela sobre o ambiente de negócios no país?”

Com ou sem reclamações, tudo indica que o Uber é daquelas inovações que vieram para ficar. Hoje, o aplicativo realiza 1 milhão de viagens diárias em mais de 320 cidades. Na semana passada, reafirmou-se como a startup mais valiosa do planeta, com valor estimado em 51 bilhões de dólares – o mesmo, por exemplo, da tradicional fabricante de carros General Motors. Para os próximos anos, o Uber reserva transformações ainda mais radicais. Pretende nem ter motoristas nos carros, substituindo-os por frotas automatizadas, o que certamente gerará protestos.

A sina do Uber é a mesma enfrentada por outras inovações históricas. No século XV, a criação da prensa pelo alemão Johannes Gutenberg sofreu resistência de escribas e legisladores, amedrontados com a inédita possibilidade de replicar em larga escala livros, jornais e revistas, o que permitiu que o conhecimento não mais fosse de controle da elite. Logo se notaram as óbvias vantagens e surgiram leis capazes de liberar e regular a novidade. No século XVIII, a máquina de tear, ignição da primeira Revolução Industrial, irritou trabalhadores do campo. Mas prevaleceram as melhorias trazidas pela indústria nascente. Nos idos de 1880, quando a luz elétrica começou a se tornar popular, as empresas de gás conseguiram mantê-la fora de Londres por quase uma década. Ao final, ficou claro que as vantagens da eletricidade eram superiores aos interesses dos que dominavam a indústria de gás e ninguém poderia impedir a transição.

Hoje, quem viveria sem livros, produtos industriais ou eletricidade? No futuro, viveremos sem Uber? “Depois que o app chega é muito difícil livrar-se dele por um motivo simples: trata-se de um ótimo serviço”, pontua o administrador americano Brent Goldfarb, professor da Universidade de Maryland. A inovação vence a burocracia, a corrupção e a mão pesada do Estado ao oferecer algo que ninguém sabia ser necessário, mas que depois ninguém vive sem. Como dizia Steve Jobs (1955-2011), fundador da Apple: “Muitas vezes, as pessoas não sabem o que querem até mostrarmos isso a elas”. Nessas horas, cabe ao Estado apenas olhar de longe, abrir caminho e não congestionar o trânsito.

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