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Dados que curam

Na era digital, a possibilidade de coletar, organizar e acessar um mundo de informações favorece o trabalho dos médicos - e quem mais ganha são os pacientes

Por Raquel Beer 17 jun 2016, 21h42

“Declare o passado, diagnostique o presente e preveja o futuro”, dizia o fisiologista grego Hipócrates, apelidado de o pai da medicina, no século V a.C. Com essa elegante definição do trabalho médico, o pensador indicava a relevância do acúmulo de conhecimento prévio para guiar os tratamentos. Ao receber um paciente, o profissional de saúde precisa, antes de tudo, relacionar os sintomas relatados a outros quadros similares para realizar o exame, prescrever medicamentos e prever qual será a eficiência da terapia recomendada. Até muito recentemente, porém, antes do desenvolvimento de exames de laboratório complexos e conclusivos, os doutores tinham de confiar apenas na memória de um enfermo para desenhar um caminho de cura.

Deu-se agora uma espetacular guinada com o avanço da era digital, da inteligência alimentada pelos algoritmos e do big data — termo que descreve a possibilidade de organizar e consultar, de forma automática, montantes colossais de dados em qualquer área do conhecimento humano.

No século XXI, médicos dependem cada vez menos do próprio conhecimento, ou do que relatam os pacientes, para “declarar o passado, diagnosticar o presente e prever o futuro”. Bastam alguns cliques no computador para ter acesso a quase toda informação. Está acabando o tempo em que clínicos de pronto-socorro podem se contentar em dizer aos doentes, genericamente: “É uma virose”.

O impacto das novas tecnologias de big data no trabalho médico pode ser medido em números. Ao longo da vida, um indivíduo gera o equivalente a 200 terabytes de informações ligadas à sua saúde. Entretanto, em torno de 90% desses dados se perdem porque não são armazenados, ainda. Estima-se que, se os médicos tivessem acesso ao histórico de todos os pacientes do mundo, seria possível reduzir em 20% a mortalidade global. A precisão nos diagnósticos possibilitaria ainda uma economia de 300 bilhões de dólares ao ano apenas para o sistema de saúde dos Estados Unidos. Esses benefícios levam a uma adoção cada vez mais ampla dessa inovação: a cada ano, aumenta em 20% a digitalização de informações médicas no planeta. Portanto, não está tão longe um futuro no qual não mais 90%, quiçá nem 1%, desse conteúdo será perdido.infografico-os-dados-de-cada-um

Dada a imensidão de estatísticas que podem ser colhidas, como or­ga­ni­zá-­las e compreendê-las? A resposta está nos softwares de big data. Eles são resultado direto do exponencial barateamento da capacidade de armazenamento dos computadores, acompanhado pela multiplicação do processamento dessas máquinas e pelo avanço da tecnologia de sequenciamento genético. Tudo somado, temos a interpretação automática, mesmo por aparelhos comerciais como smart­pho­nes e tablets, de todo o conteúdo compilado pelos profissionais. E haja dados: um único hospital pode acumular 665 terabytes deles ao ano, o equivalente a três vezes todo o catálogo da Biblioteca do Congresso americano, a maior do mundo.

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Um dos mais novos e promissores frutos desse caldo tecnológico é o programa Watson Health, próprio para hospitais. Lançado pela IBM em abril de 2015, ele é um refinado produto de inteligência artificial, alimentado pelos potentes servidores da empresa americana, cuja missão é agrupar grande parte dos dados medicinais do planeta para facilitar o trabalho dos médicos. No mês passado, a IBM começou a negociar a instalação do programa em clínicas brasileiras. Como ele vai funcionar? O Watson é alimentado de informações provenientes de laboratórios, hospitais e até mesmo iPhones. Em uma parceria com a Apple, a IBM fez com que seu software tivesse acesso a informações geradas a partir de aplicativos de celular e tablet que medem o estado de saúde de seus usuários. Que tipo de material é coletado? Quantos passos as pessoas dão em um dia, se dormem bem, em que ritmo bate o coração, e muito mais. “Há uns cinco anos começamos a notar quanto essa abordagem da computação, chamada de cognitiva, se tornará chave para a evolução do cuidado médico”, disse a VEJA o oncologista americano Mark Kris, um dos responsáveis pelo projeto do Watson Health. “A ferramenta que criamos é fundamental para a construção de tratamentos individuais, específicos e sob medida, de cada paciente, em qualquer lugar. É o futuro da medicina, começando hoje.”

No consultório, o Watson Health acaba por operar como um Google dos médicos. A tecnologia apresenta subdivisões de acordo com a especialidade do campo da saúde. Uma das mais consultadas é o Watson Oncology, focado na oncologia e desenvolvido em parceria com o prestigiado hospital americano Memorial Sloan Kettering Cancer Center. Durante os últimos cinco anos, médicos abasteceram o Watson — e continuam a fa­zê-lo — com histórias de casos atuais e antigos de câncer, ensinando assim a inteligência artificial a abordar cada variação da moléstia. Hoje, oncologistas com acesso ao programa consultam esse banco de dados antes de atender um paciente. Nele, é possível inserir o quadro clínico geral de um paciente. A partir daí, a inteligência artificial calcula quais são os métodos que se provaram mais eficientes para o tratamento da enfermidade em questão.

Antes da chegada do Watson Health ao país, hospitais brasileiros já vinham instalando tecnologias similares. Há quatro anos o paulistano Sí­rio-Li­ba­nês investe na criação do que denominou de Biobanco, uma central de servidores com dados de amostras de sangue e tecido e com informações sobre tumores de pacientes. A tecnologia, em teste, ainda é acessada apenas por uma área de pesquisas, na qual quarenta pacientes têm servido de voluntários. “Mas estamos felizes com os resultados e logo implementaremos esse recurso em todo o nosso complexo”, diz o bioquímico Luiz Fernando Reis, responsável pela iniciativa.

Outro exemplo do bom uso do big data na área médica vem do laboratório paulistano Mendelics. Fundada há quatro anos pelo neurologista David Schle­sin­ger, a empresa é especializada em sequenciamento genético, técnica que contribuiu para o desenvolvimento desta era do big data. Por menos de 10 000 reais, em média (há cinco anos, esse valor era mais que o dobro), em apenas um mês de trabalho, o Mendelics analisa o DNA de uma pessoa e identifica as alterações nos genes que podem predispor a algum mal, como a doença de Parkinson, por exemplo.

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As vantagens dessas inovações são evidentes. É preciso, porém, atentar também para alguns perigos da novidade. Um deles é a exposição da privacidade das pessoas. Afinal, como saber se um paciente concorda que as informações de sua doença sejam coletadas e jogadas em um banco de dados, expondo sua condição a desconhecidos? Ilustra bem esse nó a existência de uma rede social para profissionais de saúde (o cadastro é gratuito, mas apenas acessível a quem é da área), a Figure 1. Ela funciona como um Instagram com imagens de doenças e adoecidos. Em teoria, é preciso preservar a identidade do paciente ao compartilhar uma imagem — conteúdo que pode ser útil, por exemplo, para um médico pedir orientações a um colega, especialista em uma enfermidade, de um hospital do outro lado do planeta. Entretanto, como tudo na internet, há brechas que acabam por expor as pessoas.

Outro dilema, este talvez ainda mais delicado, é a transformação de qualquer paciente em um especialista, dada a facilidade de coletar dados. No Google, 20% das buscas realizadas são relacionadas a doenças — e muita bobagem, como tratamentos sem fundamentos científicos, aparece quando se faz esse tipo de pesquisa. Com a intenção de reduzir danos, o Google se uniu a hospitais como o paulistano Albert Einstein para sempre apresentar informações corretas quando um usuário faz buscas no site. Desde março, quando alguém procura por uma enfermidade, como a zika, aparece, ao lado dos resultados usuais (normalmente, pouco confiáveis), uma tabela feita por especialistas que descreve a evolução da doença e indica onde procurar ajuda. Como é habitual no mundo da inovação, o problema que surge com a tecnologia acabou sendo resolvido, também, pela própria tecnologia. Há, sim, questões a ser discutidas quando se trata de coleta extensiva de informações individuais. Porém, separar o joio do trigo é algo que já começa a ser feito a partir da análise de dados. O “achismo” morreu.

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