Foi-se o tempo em que as caminhonetes eram consideradas, em essência, veículos de trabalho. Desde as primeiras variações do Ford Model T, em 1925, a ideia de usar uma caçamba aberta para transportar carga era o avesso do estilo de vida luxuoso ou esportivo. As picapes eram ferramentas práticas, capazes de encarar tarefas pesadas, e ponto. Com o avanço da tecnologia, contudo, modelos com tração nas quatro rodas começaram a ganhar a preferência de consumidores interessados em explorar os caminhos fora das estradas pavimentadas. Tornaram-se objetos de desejo. E as montadoras, de olho nessa tendência, passaram a desenvolver modelos cada vez maiores, mais poderosos e com acabamento requintado. O resultado é uma explosão de vendas no setor das picapes grandes, ou full size, como são conhecidas nos Estados Unidos, a terra dos veículos gigantes. A onda chegou de vez ao Brasil.
Há quatro anos, só havia um modelo do tipo disponível no país, a Ram 2500, que vendia pouco mais de 500 unidades por ano. Agora, a frota da montadora americana, integrante do grupo Stellantis, aumentou e conta com a gigantesca Ram 3500 e a irmã “menor”, a Ram 1500. Juntos, os três modelos somaram, em 2022, 4 500 unidades negociadas, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). As concorrentes já perceberam o potencial e começam a trazer seus representantes. É o caso da Ford, que lançou a icônica F-150 em duas versões parrudas, e da Chevrolet, que trará a nova Silverado no segundo semestre. Juntos com a Ram 1500, esses três são os mais vendidos em terra americana.
Olhar para o mercado dos Estados Unidos ajuda a entender os motivos do sucesso dos grandalhões. “Hoje o consumidor brasileiro vê o que o americano quer nas picapes, um veículo que oferece as mesmas comodidades de carro de passeio, mas com vantagens como a capacidade de carga muito maior”, diz Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford na América do Sul. Se antes as caminhonetes eram desajeitadas, pouco confortáveis para longas viagens, simples e funcionais, agora oferecem o mesmo grau de requinte encontrado em esportivos de luxo. Quem entra na cabine de um desses modelos encontra amplo espaço interno, um pacote generoso de tecnologias embarcadas, como assistentes de direção e capacidade off-road, e conforto para passar horas na estrada.
Não à toa, estão roubando terreno dos SUVs e tornando-se veículos aspiracionais. “No Brasil, em todos os segmentos, ter um carro ainda é sinal de ascensão social”, diz o consultor Milad Kalume Neto, da Jato Dynamics, especializada no mercado automotivo. “Uma picape desse nível, então, mostra um determinado nível e uma série de elementos subjetivos sobre poder econômico.” Passando da barreira do meio milhão de reais, elas têm um forte apelo entre os endinheirados que moram no campo, sobretudo. Aparecem até em sucessos sertanejos, ocupando o lugar que no passado recente pertenceu a picapes médias como a Toyota Hilux e a Chevrolet S10, entre outras.
Mas há um nó. Devido ao porte e aos motores potentes, no entanto, essas caminhonetes enormes vão na contramão das discussões ambientais. São movidas a gasolina ou diesel, gastam muito mais combustível e, consequentemente, as emissões de gases poluentes tendem a ser elevadas. Pelo tamanho, não foram feitas para rodar em grandes cidades. Imagine encontrar uma vaga, na rua ou no shopping, para um carro com mais de 6 metros de comprimento e 2 de largura. Ou andar em ruas mais apertadas. São, a rigor, preocupações secundárias para quem compra uma delas. E a onda segue firme na contramão das demandas atuais.
Nos Estados Unidos, país acostumado a veículos enormes, ao menos a solução para as altas emissões começa a ser desenhada na forma de motorização híbrida ou elétrica — por aqui, só há um modelo híbrido, a Ford Maverick, na categoria das médias. Resta saber quanto tempo o reinado dos gigantes há de durar.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852