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VEJA acompanha 1º transplante multivisceral no Brasil

Operação durou 16 horas e só foi possível pelos avanços da medicina invasiva

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h33 - Publicado em 12 abr 2012, 09h43
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No centro, o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto comanda a equipe responsável pela preparação do corpo da receptora. À esquerda, no fundo, o cirurgião Sergio Meira coordena a limpeza dos órgãos a ser transplantados
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No centro, o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto comanda a equipe responsável pela preparação do corpo da receptora. À esquerda, no fundo, o cirurgião Sergio Meira coordena a limpeza dos órgãos a ser transplantados ()

Era terça-feira, 3 de abril, noite da última apresentação em São Paulo do baixista e compositor Roger Waters, ex-líder da banda de rock Pink Floyd. No fim do espetáculo, cerca de 70 000 pessoas lotavam as ruas estreitas em volta do Estádio do Morumbi. O trânsito não andava. O som das buzinas parecia abafar o que se ouvira antes. Naquele momento, a apenas 800 metros dali, no Hospital Albert Einstein, um grupo formado por três cirurgiões, quatro assistentes, uma enfermeira e dois instrumentadores se preparava para ir a um hospital distante, na Zona Sul da cidade, em um dos bairros mais pobres da capital. Às 23h46, chegaram dois dos três táxis pedidos pelo telefone. Todos se apertaram nos carros e partiram. Vinte minutos depois, e nada, eles continuavam nas cercanias do Morumbi. “Esse show deve ter sido incrível”, disse o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto, chefe da equipe de transplantes do Hospital Albert Einstein, ao observar a iluminação do estádio vista de longe.

A calma dos especialistas impressionava ante o desafio que estavam prestes a enfrentar. O grupo ia a um hospital público da periferia da cidade para fazer a captação dos órgãos do primeiro transplante multivisceral do Brasil. Considerado a cirurgia mais complexa da medicina, o procedimento consiste na substituição de vários órgãos ao mesmo tempo – naquele caso específico, estômago, duodeno, pâncreas, fígado e intestino delgado. É uma operação de proporções épicas, à qual VEJA teve acesso com exclusividade. Foram treze horas de operação. Vítima de cirrose, a receptora é uma mulher de 59 anos, 1,58 metro e 60 quilos – 10 deles referentes ao líquido acumulado na região abdominal. Conforme a doença avança, o fígado é tomado de fibroses, cicatrizes que dificultam a passagem de sangue pelo órgão. Com isso, os vasos a seu redor ficam sobrecarregados e não conseguem dar vazão ao sangue. O problema culmina com a obstrução dessas veias. O risco de hemorragia faz com que a mortalidade durante a complexa cirurgia chegue a 20%. Em um transplante hepático, também considerado de alto risco, o índice não passa de 0,03%.

Desde 1989, somente 250 transplantes multiviscerais foram feitos no mundo. A equipe do Hospital Albert Einstein (Ben-Hur Ferraz Neto, o cirurgião Sergio Meira e o anestesista Raffael Zamper) foi treinada em um dos melhores deles, a Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. O transplante multivisceral foi descrito pela primeira vez em 1960, ao ser realizado em cães pelo médico Thomas Starzl, da Universidade de Pittsburgh, também americana. Lançada no fim da década de 70, a ciclosporina, medicamento usado contra a rejeição em transplantados, motivou as primeiras experiências em humanos. Em 1983, Starzl submeteu uma menina de 6 anos à técnica. Mas a paciente morreu imediatamente depois da operação em decorrência de intensa hemorragia. No ano seguinte, foi descoberto o tacrolimus, um imunossupressor mais eficaz nos transplantes que envolvem os intestinos, órgãos naturalmente propensos a rejeição. Cerca de 90% dos transplantes multiviscerais são motivados por afecções intestinais.

Nos centros americanos de referência, a sobrevida dos pacientes submetidos ao transplante multivisceral é de 80% no primeiro ano. Na década de 90, ela não passava de 50%, no mesmo período. Como o volume do enxerto de órgãos em monobloco é muito grande, o peso do doador não pode ser maior que o do receptor nem 50% inferior. A título de comparação, nos transplantes de fígado o doador pode ser até 40% mais pesado ou 60% mais magro. Somente nos anos 2000, o transplante multivisceral deixou de ser experimental e tornou-se uma opção clínica de tratamento. No Brasil, 400 pessoas devem se beneficiar da técnica.

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À meia-noite e 28 minutos, a equipe do Albert Einstein chegou ao hospital público onde estava o corpo do doador, uma mulher de 1,50 metro e 58 quilos. Aos 39 anos, ela morrera em decorrência de um derrame. Ao desembarcarem dos táxis, os especialistas carregavam duas caixas térmicas vermelhas, de 60 centímetros de largura por 40 centímetros de altura, repletas de gelo picado. À 1h15, começou a cirurgia. Os médicos lavaram o corpo da doadora com uma solução à base de iodo. À 1h25 da manhã, Ferraz Neto fez o primeiro corte no abdômen da doadora. Dois minutos depois, um cheiro nau­seante invadiu a sala. O odor, resultado do sangue misturado à gordura queimada pelo bisturi, permaneceu até o fim do procedimento, às 2h49.

Os órgãos foram retirados todos juntos. No jargão médico, o procedimento é conhecido como “enxerto de órgãos em monobloco”. O conjunto de 4 quilos foi acondicionado em um saco plástico. Em seguida, levado a uma bacia funda de metal com gelo. O objetivo era manter os órgãos a uma temperatura média de até 4 graus – baixa o suficiente para garantir a integridade dos órgãos, mas não tão baixa que pudesse queimá-los. Às 3h30, a equipe começava uma corrida contra o tempo, agora nos táxis de volta ao hospital onde havia começado a épica aventura. O tempo máximo para manter os órgãos fora do organismo humano, sem que eles se deteriorem, é de doze horas. De madrugada, com o trânsito livre, dez minutos depois, todos estavam de volta ao Albert Einstein para a mais vibrante e extraordinária cirurgia já feita no país desde 1985, ano de realização do primeiro implante de fígado no Brasil. “Que Deus abençoe a todos”, disse, emocionado, Ferraz Neto, exatos dois segundos antes de deflagrar o procedimento, às 5h32 da manhã, na sala 12 do centro cirúrgico, no 5º andar do hospital israelita.

Além dos catorze profissionais diretamente envolvidos, entre cirurgiões, anestesista, instrumentadores, enfermeiros, assistentes e um técnico de informática, para o caso de alguma máquina entrar em pane, estavam ali outros quatro especialistas e dois estudantes de medicina. Paralelamente à cirurgia para a preparação da receptora, à direita da maca, dois outros médicos, sob o comando do cirurgião Sergio Meira, começavam o processo de limpeza do monobloco de órgãos. Durante quatro horas, ele preparou o enxerto, extraindo 600 gramas de gordura e músculo que haviam restado do corpo da doadora. O silêncio sepulcral que se instalou nos primeiros seis minutos de toda a operação foi quebrado pelo alto volume da música She Loves You, dos Beatles, vindo das caixinhas de som plugadas no iPod do anestesista Raf­fael Zamper.

No momento em que o corpo da receptora começou a ser operado, o cheiro ruim de sangue com gordura queimada invadiu a sala. Foram feitos dois cortes no abdômen da paciente. Um no sentido vertical, de 30 centímetros de comprimento, e o outro, na horizontal, de 25 centímetros, a partir do umbigo para a direita. O corpo estava ligado a quatro grandes máquinas além do respirador artificial. Uma delas mantinha os lençóis sobre o peito e as pernas a uma temperatura média de 37 graus. A segunda monitorava as funções vitais, exibindo-as em dois monitores. A terceira comprimia intermitentemente as pernas da paciente para ativar a circulação do organismo e evitar trombose. O último equipamento era um transfusor de sangue automático, apto a reduzir drasticamente a necessidade de transfusão em cirurgias de grande porte.

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Passavam quinze minutos das 6 horas da manhã quando a luz de um sol forte atravessou as duas janelas da sala. Imperava um silêncio respeitoso no centro cirúrgico. Ferraz Neto sussurrava. Bastava um olhar ou um aceno de mão do cirurgião para que os assistentes entendessem qual instrumento deveria ser entregue ou que vaso sanguíneo seria suturado. O barulho vinha apenas do tocador de MP3 do anestesista, que depois dos Beatles seguira para Dire Straits, Rush, Queen e AC/DC. Por volta das 7 da manhã, teve início a extração dos órgãos da receptora. Primeiro foi o intestino delgado. Em seguida o fígado, o duodeno e o pâncreas, às 8h58. O mau cheiro ficou ainda mais forte, agora proveniente do órgão deteriorado da paciente. Às 9h27, o último órgão foi extirpado, o estômago. Nos transplantes multiviscerais, o processo de extração dos órgãos é uma das etapas mais delicadas e tensas. Em geral, os órgãos estão tão fragilizados e já comprometeram tanto as estruturas ao seu redor que o cirurgião tem dificuldade para diferenciar, por exemplo, veias de artérias. Vasos que deveriam ter 1 milímetro de espessura estão dez, quinze vezes mais espessos, aumentando muito o risco de hemorragia. Ferraz Neto pediu uma cadeira para operar sentado. Passado um minuto, ele já estava de pé novamente. “Agora, vamos pôr a música mais alto”, pediu. Vivia-se um instante decisivo. Na maca havia um corpo com a cavidade abdominal escancarada e praticamente vazia, apenas com rins e bexiga funcionando normalmente. Em tais condições, a paciente só sobreviveria por três horas. E então Elvis Presley começou a cantar Rock Around the Clock.

Deu-se início, então, ao processo de implantação do monobloco. O evento mais extraor­dinário do transplante multi­visceral aconteceu às 11h40, quando os cinco órgãos foram infundidos no sangue da receptora. Reviveram, portanto, no novo organismo. Apenas cinco segundos depois da sutura da aorta, o monobloco teve sua aparência transformada. De cor pálida e aspecto murcho, ele enrubesceu e ganhou forma robusta. “Se pudesse escolher um único momento como o mais decisivo de um transplante, diria que é este”, define Ferraz Neto. “Lindo!”, exclamou. “Não poderia ter música mais perfeita para este momento.” Tocava Guns N’Roses, Sweet Child O’ Mine. Em português, Minha Doce Criança, uma das prediletas do cirurgião.

Às 12h58, a equipe interrompeu os trabalhos para descansar. Pela primeira vez em treze horas, seus integrantes pararam para comer. Na sala dos médicos, devoraram sanduíches de queijo, presunto e salada de alface e tomate. Beberam água, refrigerante e café. Durante o repouso de quase uma hora, muito pouco se falou do que havia acontecido até ali. Em torno de 2 horas da tarde, estavam de volta à sala cirúrgica para finalizar o implante do enxerto. O último ponto foi dado às 15h15, na sutura do intestino delgado da doadora com o intestino grosso da receptora, na porção inferior do monobloco. Os órgãos foram então cobertos por compressas e a pele, enfim, costurada. As compressas absorvem o sangue em casos de pequenos sangramentos. O material deveria ser retirado na sexta 6, em uma pequena intervenção. Por seis meses, a paciente deve viver com uma ileostomia (quando um pedacinho do intestino delgado fica para fora do organismo). É um recurso usado para que os médicos possam examinar diariamente o estado do implante, em busca de infecções ou rejeição. Até o fim de maio, ela permanecerá com uma sonda no estômago para poupar o trabalho do órgão durante a alimentação.

Às 15h50, o primeiro transplante multivisceral do Brasil chegou ao fim. Foram utilizadas 790 compressas, doze tesouras e 120 pinças, e aplicados 3 000 pontos. Ferraz Neto cumprimentou cada um dos especialistas presentes na sala com um aperto de mão seguido de um cansado “parabéns, obrigado”. Os médicos saíram da sala, lavaram as mãos, tiraram os aventais, a máscara e a touca. Exaustos, Ferraz Neto e Sergio Meira sentaram-se no chão do corredor. Logo, colegas dos mais variados setores do hospital apareceram para parabenizá-los com abraços e tapas nas costas. Sorriam. Até o fim de quinta-feira passada, a condição clínica da paciente era considerada satisfatória.

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Com reportagem de Natalia Cuminale

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