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Precisamos falar sobre a maconha

A proposta aprovada pela Anvisa de legalizar a 'Cannabis’ para fins medicinais precisa estar embasada em discussão sobre os efeitos da planta para a saúde

Por Valentim Gentil*
Atualizado em 30 jul 2020, 19h44 - Publicado em 21 jun 2019, 07h00

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou recentemente duas propostas que podem legalizar o cultivo de Cannabis sativa para fins medicinais. Ainda haverá consultas públicas para a medida entrar ou não em vigor. Mas é urgente a discussão ampla sobre o assunto. Desde Hipócrates, os médicos juram primeiro não fazer mal (“Primum non nocere”). Após a tragédia da talidomida, nos anos 1960, órgãos reguladores (FDA, European Medicines Agency e seus congêneres, como a própria Anvisa) priorizam a proteção das populações contra os efeitos danosos dos medicamentos. É missão dos profissionais de saúde prevenir e tratar doenças, identificar riscos dos tratamentos e informar se podem reverter seus efeitos adversos. Cabe a eles saber se um novo tratamento tem eficácia igual ou superior à dos já existentes e se seus efeitos nocivos são toleráveis e reversíveis. No fim, o registro de novos medicamentos depende de decisões políticas, sujeitas a interesses diversos.

Em vez de nos preocuparmos com a prevenção de danos, estamos expostos à mais ampla promoção do uso de substâncias psicoativas da história. O caso da Cannabis é exemplar: ao contrário do que se ouve, ela pode fazer mais mal do que o álcool ou o tabaco, embora de forma diferente. A identificação de alguns princípios ativos, como o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), e a descoberta do “sistema endocanabinoide”, cujas funções são pouco conhecidas, despertaram o interesse médico-científico e provocaram uma corrida por grandes ganhos financeiros. A planta tem sido modificada e suas formas de administração não correspondem aos modos utilizados desde a Antiguidade. O consumo da “supermaconha” (o skunk, com alto teor de THC) na Europa, América do Norte, Oceania e Uruguai e o uso do THC puro e de canabinoides sintéticos por meio de dispositivos eletrônicos, vaporizadores e alimentos têm levado a uma toxicidade cada vez maior.

Ainda sabemos pouco sobre os efeitos da Cannabis no neurodesenvolvimento. Pesquisa publicada em abril de 2018 no Translational Psychiatry indicou efeitos do THC em neurônios derivados de células-tronco, com a alteração de funções relacionadas à biologia do RNA (ácido ribonucleico, na sigla em inglês) e à regulação da cromatina, semelhantes aos encontrados no autismo e na esquizofrenia. Em relação ao intelecto, trabalho publicado em 2012 no Proceedings of the National Academy of Sciences mostrou que o uso de Cannabis resulta em redução de 8 pontos no Q.I. de usuários entre os 18 e os 38 anos. Diversas outras pesquisas revelaram alterações cognitivas, com prejuízos para a memória e as funções executivas, e fica a dúvida se isso é reversível. Resta a esperança de que a pronta interrupção do uso impeça danos de longo prazo, mas há claros indícios de menor rendimento escolar e na carreira profissional dos usuários persistentes de Cannabis.

“Para fins medicinais, é melhor aguardar respostas a questões fundamentais de segurança e eficácia”

Mesmo depois da remissão de episódios agudos, algumas psicoses crônicas, como a esquizofrenia, são irreversíveis, pois deixam sequelas. Somente a Cannabis e a metanfetamina têm associação demonstrada com psicoses crônicas. Afirmar que elas ocorrem porque há pessoas com vulnerabilidade a psicoses e que a Cannabis não participa de forma relevante nesse processo esbarra no fato de que outras drogas, incluindo álcool, tabaco, LSD, heroína e crack, por exemplo, apesar de nocivas para a saúde, não parecem atuar como componentes causais para psicoses crônicas. Isso torna a Cannabis particularmente perigosa, desencadeando, antecipando o primeiro episódio, agravando, dificultando o tratamento e piorando o prognóstico das psicoses, conforme documentado nos últimos cinquenta anos. Além disso, a vulnerabilidade a psicoses é multifatorial e complexa, não sendo possível dizer, com segurança, quem pode usar Cannabis.

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A relação entre o uso de Cannabis e doenças mentais foi objeto de estudo no acompanhamento de 50 000 suecos desde seu alistamento militar, em 1969. Catorze anos depois, os que haviam fumado maconha 52 vezes ou mais aos 18 anos tiveram um risco 2,3 vezes maior de internação psiquiá­trica devido a um episódio psicótico. Reavaliações feitas depois de 27 e 35 anos confirmaram que aquele grupo apresentou risco 2,2 vezes maior para psicoses em geral e 3,7 vezes maior risco para esquizofrenia. Sete outros estudos de seguimento examinando a associação entre o uso de Cannabis e psicose em jovens da Austrália, Alemanha, Holanda, Inglaterra, Israel e Nova Zelândia, publicados entre 2002 e 2010, relataram aumentos de até onze vezes no risco para usuários em relação a grupos de controle sem o uso de Cannabis. Em 2016, uma extensa investigação, que reuniu resultados de dez estudos, com mais de 66 000 indiví­duos, calculou que o risco para psicoses crônicas é 3,9 vezes maior em usuários frequentes de Cannabis com alto teor de THC, o que confirmou que o efeito é “dose-dependente” e, portanto, compatível com relação causal.

Há poucos estudos de incidência de psicoses crônicas (quantos novos casos surgem em uma população em um dado intervalo de tempo). Aumentos significativos na incidência de doenças raras tendem a não ser percebidos, por seu pequeno acréscimo em termos absolutos. A incidência de esquizofrenia é, geralmente, estimada em torno de 1% da população. No entanto, em 2003, artigo do British Journal of Psychiatry apontou aumento na ocorrência de casos de esquizofrenia em jovens de até 35 anos em Camberwell (Londres), entre 1965 e 1997, coincidindo com o aumento no uso de Cannabis de alta potência. Em março de 2019, estudo divulgado pelo Lancet Psychiatry, feito em dez cidades da Inglaterra, Holanda, França, Espanha, Itália e Brasil, com 901 pacientes em primeiro episódio de psicose entre maio de 2010 e abril de 2015, mostrou correlação significativa entre a incidência de psicose e as taxas de uso de Cannabis na população geral, sobretudo quando esse uso era diário. O risco foi diretamente relacionado a teores elevados de THC, mais uma vez indicando relação causal. Logo, o argumento de que, “se fosse verdade que a Cannabis causa psicose, o aumento no consumo nas últimas décadas teria resultado em aumento na incidência das psicoses, mas isso não ocorreu” não se sustenta. Ocorreu, sim.

Outros efeitos da Cannabis, muito mais frequentes, incluem a “síndrome amotivacional” (apatia, desinteresse, falta de motivação), quadros depressivos e ansiosos, alterações emocionais e nas relações interpessoais, “pseudocriatividade” e também o “transtorno esquizotípico da personalidade”.

Nesse contexto de risco de danos irreversíveis, seria adequada maior cautela no exame dos pleitos para a legalização do uso da Cannabis. Para fins medicinais, é melhor aguardar respostas a questões fundamentais de segurança e eficácia da droga comparada a outros tratamentos. Para isso, não é preciso autorizar empresas ou usuários a plantar Cannabis, pois não poderão ser registrados medicamentos sem essas informações. Muito menos justificável, e até mesmo inaceitável, seria legalizar o “uso recreativo”.

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O contrário dessa postura, com a liberação do consumo medicamentoso e recreativo, ainda que debaixo de severo controle legal, poderia parecer humanitário, mas configuraria apenas uma atitude irresponsável, principalmente com relação aos jovens e às futuras gerações.

* Valentim Gentil é professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)

Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640

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