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Os 4 meses de pandemia escancararam o abismo que separa os Brasis

Nesse momento mudança, cada um deve lutar por uma nação mais forte, justa, unida. Isto só será possível se investirmos em educação, ciência e saúde

Por Ludhmila Hajjar
Atualizado em 3 jul 2020, 22h07 - Publicado em 3 jul 2020, 11h49

Aprendemos nesses 4 meses de doença no Brasil e 6 meses de doença no mundo que a COVID-19 é uma doença benigna em aproximadamente 80% das pessoas, com sinais e sintomas como febre, tosse, cansaço, mal-estar geral, dores no corpo, alterações de olfato e do paladar, diarreia e dor abdominal. Porém, 20% dos infectados têm a forma grave da doença (mais comumente os grupos de risco como idosos, obesos, cardiopatas, pneumopatas, portadores de câncer e imunossuprimidos) com acometimento dos pulmões, e aproximadamente a metade tem complicações do coração e dos rins. Esses doentes muitas vezes precisam de internação em Unidades de Terapia Intensiva, e necessitam de respiradores (ventilação artificial), ficando entre 20 e 30 dias internados.

Aprendemos no Brasil, infelizmente, que quem interna na UTI privada com COVID-19 tem 20% de chance de morrer, e infelizmente quem é atendido pelo SUS, tem 40% de chance de morrer. Mas, ao faltar leitos de UTI em uma cidade, fato que ocorreu e infelizmente deverá ocorrer nas próximas semanas, todos os cidadãos são prejudicados, os ricos e os pobres, os que têm direito a saúde suplementar e os que não têm. Sem dúvida, as consequências da COVID-19 são piores para as classes sociais mais baixas, que não têm condições adequadas de nutrição e de higiene, e que vivem no seguimento informal da economia, quando têm emprego. A COVID-19 expôs a desigualdade no Brasil de uma maneira muito triste e evidente. Muitos brasileiros morreram no anonimato, sem direito a uma despedida, isolados, em meio a muitas incertezas e medos.

Em meio a tanto sofrimento, sugiram os heróis oportunistas, os milagreiros, os vendedores da cura. Medicações sem comprovação foram de maneira ideológica defendidas como arma contra a doença, informações inverídicas chegaram e chegam todos os dias para a população – as incoerentes fake news – e tudo isso apenas contribuiu para a desinformação e para a adoção de medidas inadequadas. Em saúde e ciência, não tem lado A ou B, esquerda ou direita; tem realidade, fatos, comprovações, e busca por benefícios e pela minimização de efeitos adversos quando tratamos um paciente. Infelizmente, o Brasil reagiu mal à doença. Muitos negaram sua existência, minimizaram seu impacto, nem sequer aderiram às recomendações de todo o mundo, especialmente de países que sofreram muito antes e que poderiam nos ter ajudado.

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Não houve união entre federação, estados e municípios; surgiram intrigas, disputas e desvios, sendo que a única briga deveria ser a luta pela vida e pela dignidade do ser humano. A COVID-19 infectou milhares, matou algumas centenas de milhares, destruiu sonhos, afetou os lares brasileiros. Quando essa doença vai acabar? Quando tudo volta ao normal? São as perguntas que mais ouço no meu dia a dia como médica. Quando acaba, não sei… O Brasil é um país continental que não seguiu o exemplo de nenhum país, não teve uma política adequada de combate ao coronavírus, não investiu em testes diagnósticos, além de ter populações ribeirinhas, indígenas, cidades que não tem nenhuma condição de atender pacientes, que não tem sequer médicos. Comprar respirador apenas não resolve; abrir leitos sem preparo não muda os resultados.

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O foco hoje é capacitar profissionais, ativar leitos com qualidade, organizar a regulação do sistema de saúde, dar protagonismo às universidades, propor a união da iniciativa privada ao SUS no combate à doença, estimular as doações, orientar a população quanto as medidas de prevenção, enfim, envolver todos nesse momento nessa causa única. Vida voltar ao normal? Acho que não vai e nem acho que devemos voltar ao normal. Depois dessa terrível pandemia, mudaremos nossa forma de reagir, vamos valorizar a saúde, enxerga-la com um novo foco. Devemos entender que esse é um momento de transformação, que cada cidadão devera contribuir para reconstruir a história do Brasil, lutando por uma nação mais forte, mais justa, mais unida. Isto só será possível se investirmos em educação, ciencia, saúde e inovação, valorizando a natureza, e a arte. Se não entendermos nosso papel como cidadão nessa transformação, seguiremos como nação frágil e suscetível a novas tragédias.

A infecção pelo novo coronavírus ou COVID-19 ou SARS-CoV-2, descrita inicialmente na China em dezembro de 2019, se espalhou por todos os continentes resultando em 479.000 mortes (23 de junho), causando um dos maiores desafios do último século. A doença chegou no Brasil em fevereiro de 2020, e nas últimas semanas, assistimos a exponencial elevação do número de casos infectados, atualmente registrando mais de 1 milhão de pessoas contaminadas e 52.000 óbitos.

O novo coronavírus é o 7º vírus de uma família de vírus que tem predileção por afetar o sistema respiratório. Em 2002 e em 2012, o mundo viveu duas epidemias por coronavírus, a SARS-Cov-1 e a MERS, na China e no Oriente Médio, respectivamente, resultando em 1508 óbitos no total. A Covid-19 é uma doença com alta capacidade de transmissão, sendo que para cada indivíduo doente, em média três serão contaminados. Essa capacidade de disseminação do vírus fez com que em fevereiro a Covid-19 fosse reconhecida como uma emergência global, e em 11 de março de 2020, a mesma foi declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde. O mundo todo busca enfrentar o novo coronavírus, procurando formas de prevenir a doença, de melhorar a eficácia diagnóstica e de reduzir a mortalidade dos casos graves. Muito aprendemos em 4 meses da doença no Brasil, que nos faz hoje compreender melhor o valor da saúde para uma nação, a importância da ciência, da natureza e das artes para a manutenção da vida, e a necessidade de líderes responsáveis e envolvidos com os problemas de seu povo.

A ansiedade, o medo, a histeria e mesmo a ignorância que muitas vezes impedem a população de reagir contra a doença, de aderir às orientações das autoridades, são reflexo de um Brasil que não investiu em educação, que não buscou minimizar as desigualdades, e que não lutou para minimizar o abismo que separa os diferentes Brasis em que vivemos. Educação, ciência, saúde e tecnologia são os principais componentes da sustentação de uma nação e deveriam ter sido devidamente valorizadas nos últimos anos para que a nossa sociedade não pagasse um preço tão alto no enfrentamento de uma pandemia como a COVID-19. Infelizmente nos últimos anos, obtivemos no Brasil indicadores decrescentes nessas áreas, decorrentes tanto da falta de investimento adequado, da incapacidade de gestão quanto da corrupção, que tanto assola o Brasil.

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A criação do Sistema Único de Saúde e o reconhecimento pela nossa Constituição Federal de 1988 da saúde como direito de todos e dever do Estado, representou o maior acontecimento na história da saúde pública no Brasil. Tendo como princípios a universalidade, a equidade e a integralidade, temos assegurado um sistema de saúde perfeito no papel. Entretanto, a expectativa de vida da nossa população aumentou, as doenças crônicas como as doenças cardiovasculares e o câncer passaram a ser as principais causas de mortalidade no Brasil, e o sistema de saúde não conseguiu atender às necessidades da população. Não temos estrutura hoje para o atendimento adequado de doenças crônicas como o câncer, o infarto e o acidente vascular cerebral. E então surge a COVID-19, uma doença complexa, causada por um vírus com alta capacidade de disseminação e ao mesmo tempo, que pode gerar altas taxas de mortalidade. Essa doença trouxe consequências imediatas que é o elevado número de doentes e de mortos, consequências sócio-econômicas e consequências psicológicas à humanidade. Além disso, pelas necessidades impostas pela luta contra a COVID-19, no Brasil, mais de 100.000 cirurgias foram suspensas, pacientes diabéticos, cardiopatas e idosos, ficaram sem atendimento médico, sem orientação, sem ter para quem buscar socorro. Portanto, muitas mortes ocorreram e continuarão ocorrendo em virtude de nossa incapacidade de absorver todos os doentes, e de organizar o sistema de saúde de forma hierarquizada, de atuar na regulação.

Ludhmila Hajjar, infectologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e infectologista da Rede D´Or

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