A data: 21 de março de 2020. “Estou no meio de uma floresta. É inverno, com neve acumulada no chão, mas o ar está quente. Sinto uma dor no ombro direito e vejo um enorme inseto parecido com um gafanhoto, que já roeu o tecido do meu suéter e agora arranha minha pele. Depois, um verme branco e fino aparece em meu quadril. Seu toque é como ácido. Alguém diz que todos são imunes a esses seres, mas preciso sair daqui. Ao acordar, me dou conta da dor no quadril, onde o verme estava.” Trata-se, claro, de um sonho — um dos 9 000 compilados no livro Pandemic Dreams (Sonhos da pandemia), de Deirdre Barrett, psicóloga da Universidade Harvard e coautora de um estudo pioneiro sobre o que os indivíduos sonham desde que a Covid-19 passou a fazer parte do cotidiano coletivo. Ao menos cinco outros projetos em diferentes fases de andamento, inclusive no Brasil, estão analisando como a doença contaminou não só o corpo de 70 milhões de pessoas, mas também o inconsciente dos seres humanos.
Os primeiros resultados apontam para sono mais agitado, sonhos mais vívidos e constantes referências a monstros, a tristezas e, sem surpresa alguma, a uma certa mania de limpeza. Além das noites inquietas, mudanças de hábito como isolamento, uso de máscara e falta de contato físico se refletem em sofrimento e confusão de sinais. “As situações traumáticas costumam gerar um excesso de estímulo, porque desacomodam o indivíduo e requerem uma nova organização mental”, explica Rose Gurski, psicóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do projeto Sonhos em Tempos de Pandemia, junto com a UFMG e a USP.
O histórico do Google, testemunha da sociedade conectada, mostra que as buscas este ano de “por que estou tendo sonhos esquisitos” aumentaram 80% nos Estados Unidos. Aqui, a pesquisa de “como parar de ter pesadelos” cresceu 160%. Segundo Deirdre, os sonhos destes tempos estranhos ou fazem referência direta à Covid-19 (a muito citada angústia de se descobrir nu em público é replicada no temor de se ver sem máscara, por exemplo), ou pendem para o fantástico (o vírus invisível toma a forma de insetos e vermes). A ciência já demonstrou que o conteúdo dos sonhos tem contribuição decisiva para o bem-estar das pessoas. Reviver no sono acontecimentos traumáticos ajuda a controlar a memória deles, promovendo uma espécie de aprendizado — mais ou menos como na digestão, extraindo o que é benéfico e livrando-se das toxinas. Também os pesadelos têm sua função, treinando respostas para determinadas situações. “A quantidade de sonhos bizarros e assustadores durante a pandemia confirma essas premissas”, diz Natália Mota, pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que desenvolve o estudo “Sonhando durante a pandemia de Covid-19”. Por já compilar sonhos desde antes da crise, a pesquisa pode comparar as mudanças no inconsciente dos indivíduos. “Os temas da morte, segurança pessoal e perdas — do carro, do endereço de casa, da memória — aparecem de múltiplas formas”, relata Natália.
Inspirado na descrição de Sigmund Freud (pai de todas as inferências oníricas) de que os sonhos atuam como vigias noturnos que ajudam a preservar a integridade da mente, o Museu de Londres é a primeira instituição do gênero a planejar um acervo de sonhos na pandemia, o Guardiões do Sono. O projeto se encaixa em uma iniciativa maior, Collecting COVID, que se propõe a registrar as características destes tempos extraordinários para as gerações futuras. A coletânea de sonhos tem como ponto de partida uma pesquisa realizada pelo King’s College, de Londres, em junho deste ano, que aponta que metade dos britânicos relata sono mais perturbado desde que o vírus apareceu. Dois em cada cinco dormem menos horas por noite e três em cada cinco dormem mais horas, mas se sentem menos descansados. “Isso gera um ciclo difícil de quebrar. O stress elevado perturba o descanso, enquanto o sono precário afeta a resiliência mental”, frisa Ivana Rosenzweig, diretora do Centro de Sono e Plasticidade Cerebral da universidade.
A tendência de os sonhos apresentarem conteúdos semelhantes de uma forma coletiva já havia sido constatada em outras situações traumáticas, como nas semanas que se seguiram aos atentados terroristas de 11 de setembro, nos Estados Unidos. “O sonho reside no limiar entre o sujeito e o coletivo, revelando que os problemas sociais também são resolvidos no espaço mais íntimo de cada um”, diz Natália, da UFRN. Deirdre, a psicóloga de Harvard que também estudou os padrões oníricos dos muçulmanos durante a Primavera Árabe e dos prisioneiros de guerra em campos de concentração nazistas, concorda: as imagens e associações de ideias similares revelam, nos dias de hoje, uma espécie de “inconsciente coletivo” da pandemia. “Estamos enfrentando os mesmos medos, por isso apresentamos conteúdos parecidos”, explica. Os braços de Morfeu não andam nada reconfortantes. Mas, em breve, tudo isso vai passar.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718