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Novos estudos revelam os graves impactos do uso de celulares por crianças

Há problemas inclusive no modo como se alimentam, pondo em xeque o futuro de toda uma geração

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 16h58 - Publicado em 10 Maio 2024, 06h00

Em um passado não tão distante, os mais novos se divertiam correndo em casa, na escola e na praça, e davam asas à imaginação para bolar brincadeiras com os amigos de carne e osso. No avançar da segunda década do século XXI, no entanto, crianças e adolescentes estão cada vez mais hipnotizados pelas telas dos celulares, tornando-se alheios à vida real e expondo-se, sem querer ou saber, a problemas comportamentais, emocionais e físicos. É o que aponta uma série de pesquisas ao redor do globo, em um movimento de alerta de especialistas que ganhou dimensões retumbantes com o livro A Geração Ansiosa, recém-lançado nos Estados Unidos e no Reino Unido e prestes a ser publicado no Brasil. Nele, o psicólogo social Jonathan Haidt, minerando os dados científicos a respeito, propõe mudanças urgentes, com um corte radical no acesso a smartphones e redes sociais. Instagram, TikTok e companhia? Só depois dos 16 anos, prega o autor. Motivos para justificar medida tão drástica não faltam. Resta saber se a geração atual e seus entornos, tão dependentes das telas, conseguirão mitigar o vínculo (ou vício).

arte excesso de telas

Com o aumento do acesso à internet, a profusão de jogos on-line e as horas ininterruptas de programação infantojuvenil na TV nas últimas décadas, pais, cuidadores e escolas puderam observar que as atividades dinâmicas e de interação social passaram a ser substituídas pela onipresença das telas, agora representadas pelos populares tablets e smartphones. Atentas ao fenômeno, as entidades de pediatria no Brasil e nos demais países começaram a alertar para os danos ao desenvolvimento socioemocional e, em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou suas diretrizes e lançou um documento no qual convocava crianças a sentar menos e brincar mais.

Era o puro reflexo do que se observava nos lares, nos colégios e nos consultórios médicos: um descompasso entre a fase da vida em que o corpo está com mais energia e a inércia desencadeada pelos dispositivos eletrônicos. “Eu tenho desenvolvido uma explicação chamada ‘a grande reconfiguração da infância’. A infância baseada nas brincadeiras que tivemos ao longo de milhões de anos basicamente teve fim por volta de 2010 e foi substituída pela infância baseada nos celulares”, resumiu Haidt em uma conferência sobre educação nos Estados Unidos.

REAÇÃO EM CADEIA - Maus hábitos: o excesso de telas contribui para o consumo de ultraprocessados e o sedentarismo
REAÇÃO EM CADEIA - Maus hábitos: o excesso de telas contribui para o consumo de ultraprocessados e o sedentarismo (//Getty Images)

Até o momento, as recomendações mais rígidas se concentravam na primeira infância, fase crucial para o desenrolar das habilidades cognitivas. Logo, ficou estabelecido que o acesso a telas deveria ser vetado para menores de 2 anos e que a liberação ocorreria de forma pontual e gradativa nas demais faixas etárias. Na realidade, porém, isso não vem acontecendo. Um estudo da Universidade de Albany, nos Estados Unidos, mostrou que bebês de 1 ano ficavam 53 minutos diante das telas, número que saltou para duas horas e trinta minutos na faixa dos 3 anos, cujo limite ideal até os 5 anos seria de até uma hora diária. O achado, já alarmante, é de antes da pandemia, um marco para a quase fusão dos humanos com os dispositivos que os conectam ao universo virtual.

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Nessa linha, uma análise realizada com 220 famílias com crianças da mesma faixa etária publicada no periódico Jama Pediatrics traz uma das consequências da superexposição: o uso prolongado dos aparelhos resultou em menos interação verbal dos pequenos com os pais. E, após o isolamento imposto pelo coronavírus, o quadro piorou e problemas em série eclodiram. “A utilização de telas é uma epidemia e houve um crescimento exponencial após a covid-19. Com isso, tivemos piora nos indicadores de saúde física e mental”, afirma o pediatra Eduardo Jorge Custódio da Silva, do Grupo de Trabalho de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). São múltiplas as repercussões desse comportamento — e em várias frentes. Uma pesquisa recém-publicada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou 1 396 crianças de 7 a 14 anos e constatou que jogar games ou assistir a vídeos à noite levava essa população a consumir menos alimentos saudáveis, como frutas e verduras, e mais ultraprocessados, industrializados ricos em sal, açúcar e gordura.

Somado ao sedentarismo encorajado pela rotina entre telas, os efeitos sobre a dieta abrem caminho para o ganho de peso e um rol de doenças crônicas, diagnosticadas cada vez mais precocemente. “Embora não seja uma relação de causa e efeito, o celular acaba sendo um fator de risco, porque, quanto maior o tempo de tela, menos atividade física a criança faz”, diz o pediatra Mauro Fisberg, coordenador do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/Sabará Hospital Infantil, em São Paulo. O médico e outros experts acreditam que o maior desafio atual resida justamente em separar as contribuições das tecnologias para o aprendizado e a inclusão social da exposição nociva que afeta corpo e mente. “Os pais distraem as crianças com jogos por medo da bagunça, mas o ponto é que elas precisam correr e pular”, afirma Fisberg.

Além da revisão de hábitos em família, as escolas também estão discutindo o que fazer com os smartphones dos mais novos. Colégios dentro e fora do Brasil já começam a debater o tema com os pais e a restringir o acesso aos aparelhos — em alguns casos, eles ficam confinados em um armário durante as aulas, só se tornando disponíveis no recreio e ao bater o sinal de saída. A medida, que divide opiniões, se expande em escolas públicas e particulares. Segundo relatório da Unesco, divulgado no ano passado, um quarto dos países já aderiu a iniciativas do tipo em ambientes escolares.

Expostos de forma intensiva às telas brilhantes a poucos centímetros do rosto, muitos jovens começaram a apresentar olho seco e miopia. O excesso de estímulos visuais também está associado a distúrbios do sono, que desencadeiam queda no rendimento escolar, crises de enxaqueca, irritabilidade e dependência. Silva, que também é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz que essa população está enfrentando doenças antigas com novas roupagens, fora os transtornos inéditos. “Temos a síndrome do toque fantasma, quando a pessoa sempre acha que o celular está tocando, e a ‘nomofobia’, que vem de ‘no mobile’ fobia, o medo de sair sem o celular”, descreve.

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RECONEXÃO - Ser criança: experts prescrevem mais brincadeiras ao ar livre
RECONEXÃO - Ser criança: experts prescrevem mais brincadeiras ao ar livre (//Getty Images)

A preocupação dos pais é notável. Tanto que A Geração Ansiosa virou best-seller, há cinco semanas no topo dos livros mais vendidos nos EUA. O apelo e os conselhos mais radicais são um manifesto pela recuperação de uma infância roubada pelas telas e pelo combate aos transtornos mentais — duas situações indissociáveis, na visão de Haidt. O autor denuncia que as mídias sociais, a que os jovens têm acesso mesmo com as supostas travas de controle etário, criam padrões irreais e disseminam uma corrente de informações em uma velocidade tão caótica que os usuários se tornam vítimas de uma atenção fragmentada, compulsão tecnológica, comparação social e solidão. Os impactos aterrorizantes para a saúde mental aparecem nos gráficos com dados que comparam o ano de 2022 ao de 2010. Nesse período, os índices de ansiedade, depressão e anorexia cresceram 134%, 106% e 100%, respectivamente.

O resultado, quando não há suporte psicológico, pode ser devastador. Um levantamento da Fiocruz apontou aumento de 6% na taxa de suicídio no Brasil no período de 2011 a 2022 entre pessoas de 10 a 24 anos — o índice de mutilações cresceu 29%. Os cientistas e clínicos que se debruçam sobre o fenômeno são unânimes em dizer que é necessário despertar um movimento amplo, englobando governos, pais, educadores e as empresas responsáveis pelas tecnologias. “Quando surgiram, esses recursos digitais traziam a ideia de entreter e conectar pessoas, mas acabaram se pautando por uma série de manipulações comportamentais. Isso fez com que uma geração ficasse absolutamente perdida”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, da PUC-­SP. “Ou a gente começa a olhar para essa questão como algo grave ou corre o risco de perder esses jovens.”

Há um consenso de que o caminho para tirar crianças e jovens das garras eletrônicas passa pela reconexão com os pais, os amigos e os espaços coletivos. Mas quem vai deixar o filho brincar na rua ou no parque com a violência à solta? O assunto, portanto, invade a arena das políticas públicas. Afinal, crianças e adolescentes precisam de contato genuíno com as atividades que fizeram o ser humano desbravar novos ambientes e emoções, bem como lidar com sentimentos como tédio e silêncio. Nem tudo pode ser substituído por uma tela de celular.

Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892

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