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Longe do consenso

A adição de novas doenças na nova edição do 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', o DSM, coloca psiquiatras em lados opostos

Por Vivian Carrer Elias
12 Maio 2013, 13h13

Hoje, aos olhos de um psiquiatra, uma pessoa abalada emocionalmente devido à perda de ente querido não está necessariamente deprimida, mas sim respondendo de forma natural à situação. A partir do dia 18 de maio, porém, essa tristeza, em alguns casos, deixará de ser considerada normal. O luto que durar ao menos duas semanas passará a ser considerado como um dos sintomas de uma doença mental – no caso, o transtorno depressivo maior. E a solução para a sua nova condição será a administração de medicamentos. Passarão a ser considerados como mentalmente doentes também aqueles que comem compulsivamente pelo menos uma vez por semana.

Essas são algumas das importantes mudanças que estarão presentes na nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla em inglês), documento produzido por membros da Associação Americana de Pediatra (APA) e seguido por médicos do mundo todo. Nele, estão listadas e descritas todas as categorias do que a APA considera como um distúrbio psiquiátrico. A primeira edição do DSM foi publicada há 60 anos, e a quinta, o DSM-5, será lançada no próximo fim de semana, durante o encontro anual da entidade.

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Luto – É comum que as pessoas se refiram ao DSM como a “bíblia da psiquiatra”, o que não a livra de virar alvo de duras críticas e opiniões contrárias. Um dos pontos mais controversos do novo DSM é justamente o fato de o luto passar a ser considerado como um dos sintomas da depressão. A edição vigente do manual, o DSM-IV, contém uma regra que exclui o luto dos critérios para diagnóstico da depressão caso ele dure menos do que dois meses. Ou seja, até agora, os sinais depressivos de um paciente não deveriam ser atribuídos à depressão caso ele tenha acabado de perder um ente querido. O que a nova edição fez foi remover essa regra, tornando possível que a tristeza que sentimos com a morte de um parente, por exemplo, contribua com um diagnóstico da doença caso dure ao menos duas semanas.

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“É um erro terrível”, afirma categoricamente Jerome Wakefield, psiquiatra e professor da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, em entrevista ao site de VEJA. “A mudança permite o diagnóstico de depressão em pessoas que apenas perderam um ente querido e que não apresentam sintomas severos dessa condição. Essas pessoas serão rotuladas com esse transtorno mesmo apresentando sentimentos normais de quem perde uma pessoa que amava.”

A justificativa oficial para tal alteração é a de que ela vai ajudar a evitar que casos de depressão sejam ignorados, e que pessoas que realmente precisam de ajuda sejam privadas de um tratamento adequado. Foi o que explicou, em entrevista ao site de VEJA, David Kupfer, presidente da comissão que produziu o DSM-5. Para Wakefield, porém, não há evidências de que essa mudança evitaria que casos perdidos de depressão pudessem ser evitados. “Na verdade, as evidências que vêm surgindo vão contra essa decisão”, disse. “Cada vez mais há um estreitamento do que é um sentimento aceitável e quando podemos ficar tristes. Não sei se eu quero que meus filhos e netos vivam em um mundo onde eles não podem experimentar sentimentos normais de luto quando eles perderem alguém com quem eles se importem muito, pois sentimentos como esse são um sinal de amor.”

Transtorno bipolar – Outro aspecto bastante controverso do DSM-5 é a inclusão do “transtorno disruptivo de desregulação do humor”, uma nova desordem que não consta em nenhum dos manuais anteriores. A nova doença pode ser diagnosticada em “crianças de até 18 anos que mostrem irritabilidade frequente e episódios de extremo descontrole comportamental”, segundo descreveu a APA em um comunicado.

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De acordo com a APA, esse novo diagnóstico foi criado como forma de resolver o problema diagnóstico em excesso de transtorno bipolar em crianças. Estima-se que entre os anos 1990 e 2000, a prevalência do problema em crianças tenha aumentado 40 vezes. No entanto, a maior parte das crianças diagnosticadas com transtorno bipolar nos últimos anos, embora apresentasse humor irregular, não tinha a doença. “A razão pela qual elas foram diagnosticadas como sendo bipolares é que não havia outro diagnóstico para essas crianças com um comportamento difícil. O DSM-5, então, criou essa condição para atender esses pacientes infantis”, disse Michael First, psiquiatra da Universidade Columbia, em Nova York. Ele foi editor da quarta edição do DSM e trabalhou como consultor para o grupo que produziu o novo manual.

O CRÍTICO

Desde janeiro de 2012, Allen Frances, que presidiu a comissão do DSM-IV, assina um blog no site The Huffington Post no qual escreve sobre psiquiatria em geral. A maioria de seus textos, porém, se concentra em apenas um tema: criticar o DSM-5. Em um de seus posts, intitulado O DSM-5 é um guia, não uma bíblia. Apenas ignore suas dez piores mudanças“, o psiquiatra lista o que considera ser as dez piores alterações do novo manual. “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”, diz a primeira frase do texto, que foi publicado no dia em que a APA anunciou que aprovou a versão final do DSM-5. Na lista de Frances, o primeiro dos dez grandes erros do novo manual é justamente a criação do transtorno da desregulação do humor. “Essa decisão foi baseada apenas no trabalho feito por um grupo de pesquisadores. Nós não temos ideia de como esse novo diagnóstico vai ser usado na prática, mas o meu medo é de que ele vai exacerbar, e não aliviar, o já inapropriado e excessivo uso de medicamentos em crianças”, escreveu.

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Mea-culpa – Allen Frances, psiquiatra da Universidade Duke, nos Estados Unidos, foi presidente da comissão do DSM-IV. Ele atribui a seu manual parte da culpa por esse “falsa epidemia”, como classifica o aumento da prevalência de crianças bipolares. “Cometemos erros que tiveram consequências terríveis. Fomos conservadores e apenas acrescentamos duas novas doenças, mas mesmo assim a prevalência do problema em crianças aumentou. Isso aconteceu por vários motivos, mas grande parte devido ao marketing de empresas farmacêuticas. Houve, então, massivo aumento de crianças recebendo drogas antipsicóticas que as deixam gordas e com um alto risco de diabetes”, reconhece Frances, em entrevista ao site de VEJA. Apesar disso, ele não é a favor da criação da nova desordem mental. “É uma ideia terrível que transforma a birra infantil em uma desordem mental e que pode aumentar o uso inapropriado de medicamentos.”

Em defesa das mudanças – Além do “transtorno da desregulação do humor”, o DSM-5 propôs a criação de outras doenças, entre elas o “distúrbio de hoarding“, um termo em inglês que se refere ao acúmulo compulsivo de coisas, comida ou lixo e a incapacidade de se desfazer dessas coisas. No DSM-IV, esse problema era considerado como um dos sintomas do transtorno obsessivo compulsivo (TOC), mas agora a conduta por si só passará a ser considerada como uma doença mental. “Esse distúrbio sempre existiu e pacientes que têm esse problema também, mas antes essas pessoas ou eram classificadas com TOC. Isso é ruim, pois o tratamento é diferente, ou então não recebiam diagnóstico algum”, diz Michael First. “Se você tem uma doença que não está no DSM, ela não será reconhecida e ninguém saberá como tratá-la de forma adequada. Esse é a ideia por trás da criação de um novo diagnóstico.”

Na opinião de Allen Frances, porém, não cabe à psiquiatria criar ainda mais transtornos mentais. “Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos – triplicou o transtorno de déficit de atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo [a psiquiatria] deveria se sentir repreendido por esse triste currículo e deveria empenhar-se agora para educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar uma nova desordem com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis”, escreveu Frances em sua coluna no Huffington Post.

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O fim do “normal” – Para Jerome Wakefield, o problema da psiquiatria é que ela se preocupa demais em estudar e buscar comportamentos que podem ser considerados como transtornos mentais, quando deveria estudar mais sobre o que é a normalidade. “Acho que devemos estudar o comportamento e os sentimentos humanos normais com mais cuidado, especialmente em um contexto da nossa evolução. Ou seja, somos feitos para estarmos sempre calmos e sem expressar nenhuma ansiedade? Ou somos feitos para responder com medo e ansiedade a certas situações? O que é ser normal?”, questiona o psiquiatra.

“Quando olhamos para essas mudanças na psiquiatria, vemos que elas não estão deixando a normalidade ser o que é. Quando uma pessoa apresente algum sintoma, como o medo de algo, é preciso entender por quais situações ela já passou, quais são as suas reações normais e se ela tende a ser mais calma ou mais ansiosa. É preciso conhecer os significados no contexto do individuo e como ele foi desenhado biologicamente”, diz Wakefield.

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