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Identidade de gênero influencia jeito de lidar com alcoolismo

Estudo sugere que a forma como o dependente alcoólico lida com sua condição é diferente entre homens e mulheres

Por José Tadeu Arantes, Agência FAPESP
Atualizado em 13 jul 2022, 17h28 - Publicado em 10 Maio 2022, 11h43

Um estudo qualitativo conduzido por pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) sugere que a identidade de gênero influencia a forma como o dependente alcoólico lida com sua condição. A investigação foi coordenada pelo professor Edemilson de Campos, com apoio da FAPESP e colaboração de Nádia Narchi, também professora da EACH-USP. Os resultados foram divulgados na revista Drug and Alcohol Review.

Campos conta que obteve permissão para frequentar as reuniões estritamente femininas de um grupo dos Alcoólicos Anônimos (AA) na cidade de São Paulo. E foi nesses encontros, bem como nas entrevistas realizadas com as participantes, que recolheu os depoimentos em primeira mão utilizados em seu estudo.

“Grupos do AA que reúnem apenas mulheres são frequentes nos Estados Unidos. Mas no Brasil não. Os AA desencorajam esse formato, alegando que o alcoolismo é um só e afeta igualmente homens e mulheres. Mas as mulheres que entrevistei pensam diferente e me disseram que se sentiam intimidadas nas reuniões mistas. Algumas relataram, inclusive, que haviam sido vítimas de assédio e piadas sexistas durante os encontros”, diz o pesquisador.

Ele informa que existem 120 grupos de Alcoólicos Anônimos na cidade de São Paulo. Mas apenas dois deles promovem reuniões estritamente femininas: um na zona norte da cidade e outro no bairro de Santa Cecília. “Como os AA não possuem estrutura hierárquica, os grupos gozam de bastante autonomia, inclusive com coordenação rotativa. Solicitei permissão para frequentar as reuniões femininas dos dois grupos, mas apenas as participantes da zona norte concordaram”, afirma.

Campos informa que essa reunião congregava 15 mulheres, que se reuniam todo sábado: umas frequentadoras recentes, com apenas dois meses de AA; outras com mais de 30 anos de participação. De modo geral, eram mulheres com padrão econômico e nível de escolaridade mais baixo, algumas casadas com participantes dos Alcoólicos Anônimos.

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É importante esclarecer que os Alcoólicos Anônimos consideram o alcoolismo como uma “doença crônica e incurável”, decorrente de uma predisposição física aliada à obsessão mental pelo uso do álcool. E acreditam que não há força de vontade individual capaz de vencer essa doença. A rede de apoio formada pelo próprio grupo é um suporte indispensável para conviver sobriamente com ela. Os Alcoólicos Anônimos definem a si mesmos como uma “irmandade de homens e mulheres”, não ligada a “nenhuma seita ou religião, nenhum movimento político, nenhuma organização ou instituição”. A “irmandade” não cobra taxas nem mensalidades, mas possui autossuficiência financeira graças às contribuições voluntárias de seus membros.

“Já havíamos estudado grupos com reuniões mistas. O que fizemos, com muito respeito, nessa reunião estritamente feminina, foi uma pesquisa de tipo etnográfico, recolhendo relatos individuais sobre relacionamento, família, trabalho e outros assuntos de interesse das participantes. A expressão ‘dor da alma’ foi a forma como essas próprias mulheres caracterizaram sua condição, marcada por um forte sentimento de rejeição e solidão devido ao estigma social”, diz Campos.

Um aspecto notável constatado pelo pesquisador foi que, enquanto nas reuniões mistas os homens enfocavam seus relatos no trabalho e em outros aspectos impessoais da vida prática, as participantes da reunião estritamente feminina falavam muito mais de sua intimidade. “Por isso, reuniões só de mulheres são muito importantes. Por oferecerem um espaço seguro de expressão. Essas reuniões tinham o poder de devolver às participantes um sentimento de dignidade”, argumenta.

De maneira geral, o pensamento socialmente condicionado é bastante condescendente com o pai que negligencia suas obrigações paternas. Mas é implacável com a mãe que procede de forma semelhante. “O sentimento de que o alcoolismo possa tê-las impedido de cumprir aquilo que a sociedade esperava delas era algo que pesava demais para essas mulheres”, conta Campos.

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Critérios

Em sua quarta e mais difundida revisão, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM, na sigla em inglês), da Associação Americana de Psiquiatria, caracteriza como dependente de substâncias o indivíduo que tenha preenchido três ou mais dos seis seguintes critérios: gastou grande parte do seu tempo para conseguir, usar ou se recuperar do efeito da substância; usou a substância com maior frequência ou em maior quantidade do que pretendia; precisou de quantidades maiores para obter o mesmo efeito; não conseguiu diminuir ou parar de usar a substância; continuou a utilizar a substância mesmo após ter conhecimento de que ela estava causando ou agravando problemas de saúde físicos ou mentais; e deixou de fazer ou diminuiu o tempo dedicado às atividades sociais, de trabalho ou de lazer devido ao uso da substância.

No caso do álcool e de outras drogas que provocam dependência química (como tranquilizantes benzodiazepínicos, estimulantes anfetamínicos, cocaína, crack ou similares), além dos seis critérios mencionados foi agregado um sétimo, definido pela manifestação de sintomas de abstinência, que variam de acordo com a substância. Nesse caso, o indivíduo é considerado dependente se preenche três de sete critérios.

Esses critérios se aplicam igualmente a homens e mulheres. Mas o que Campos verificou em seu estudo foi que, além dessa classificação geral, a vivência do alcoolismo e de seu tratamento é fortemente influenciada pelo marcador social de gênero. “Ao contrário da ideia prevalente nos AA, constatamos que as mulheres precisam, sim, ter um espaço seguro para expor sua ‘dor da alma’”, conclui.

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Pesquisa realizada em 2017 pela Fiocruz, sobre o uso de drogas pela população brasileira, verificou que aproximadamente 2,3 milhões de pessoas, entre 12 e 65 anos, apresentaram dependência ao álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa. A incidência foi 3,4 vezes maior entre os homens (2,4% da população masculina) do que entre as mulheres (0,7% da população feminina). Mas os estudiosos do assunto consideram que este último percentual pode ter sido subestimado, devido ao forte estigma social em relação ao alcoolismo feminino. Com medo do que os “outros” poderiam pensar, dizer ou fazer, muitas mulheres dependentes podem ter escondido sua condição.

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