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Cientistas conseguem reativar cérebros de animal após a morte

O novo estudo mostra a possibilidade de manter funções cerebrais em porcos por algumas horas após a morte

Por Redação
Atualizado em 3 jul 2019, 19h33 - Publicado em 2 jul 2019, 19h26

Uma vez que o corpo morre e o sangue para de circular, espera-se que todos órgãos parem de funcionar — o que de fato acontece. Mas cientistas têm investigados formas de fazer o cérebro, considerado um dos principais órgãos do corpo, “voltar à vida” após a morte. Um estudo publicado em abril na revista Nature mostrou que com os equipamentos adequados é possível restaurar a função metabólica no cérebro. Isso significa a possibilidade de manter as funções moleculares e celulares do cérebro durante algumas horas após a morte.

“Essas descobertas mostram que, com as intervenções apropriadas, o cérebro de mamíferos retém uma capacidade subestimada de restauração normotérmica da microcirculação e de certas funções moleculares e celulares várias horas após a parada circulatória”, escreveram os pesquisadores. Para conseguir este resultado, a equipe utilizou um equipamento chamado de BrainEx, um equipamento capaz de manter os órgãos vivos fora do corpo por longos períodos ao imitar a circulação sanguínea.  

Segundo a equipe, o experimento, realizado em porcos, ainda é inicial e há muitas questões éticas a ser resolvidas antes de verificar os resultados em seres humanos. Além disso, o equipamento utilizado na pesquisa ainda não é capaz de reproduzir os resultados em cérebros humanos.

Uma longa jornada

O principal autor da pesquisa, Nenad Sestan, começou sua investigação há muitos anos, testando tecidos cerebrais de animais e humanos, concentrando-se principalmente nos neurônios. Um dos assuntos que estudou ao longo da carreira foi o conectoma, que é uma espécie de mapa de conexões do cérebro que está associada aos neurônios do cérebro e as sinapses que produzem. Durante seus estudos, ele descobriu que as células cerebrais poderiam ser mantidas vivas sob as circunstâncias adequadas.

Uma das primeiras descobertas mostrou que um fluido (líquido) personalizado com substâncias específicas poderiam ajudar na preservação da funcionalidade dos tecidos. “Seis dias foi nosso registro. Seis dias, e as células ainda eram cultiváveis”, contou Sestan ao The New York Times. Os erros cometidos nessa etapa também trouxeram novas descobertas: as amostras de tecido só permaneciam intactas se armazenadas na geladeira. Caso fossem retiradas e mantidas à temperatura ambiente, a decomposição se iniciava rapidamente. 

Outra questão a ser resolvida era a oxigenação. Os cérebros dos mamíferos são compostos de emaranhados de artérias e capilares, responsáveis pela circulação do sangue por todo o órgão. No entanto, quando o cérebro era fatiado para retirar partes de tecido, essa arquitetura era destruída, o que interferia na preservação das células. A solução para o problema estava em não usar partes do cérebro, mas o órgão inteiro e mantê-lo vivo através da perfusão. Essa técnica aproveita a rede vascular existente no órgão e imita o fluxo natural de sangue que percorre o cérebro – ajudando a evitar a morte das células e, consequentemente, a decomposição. 

Os obstáculos

Para conseguir explorar este campo, era preciso considerar os desafios. Para que a a perfusão funcionasse, por exemplo, seria necessário fazer a conexão muito rápido, antes que o sangue começasse a coagular — o que acontece minutos após a morte. O único equipamento de perfusão disponível no mercado era o CaVESWave, produzido pela empresa BioMedInnovations (BMI) — que a equipe conseguiu comprar em 2015. Para realizar os estudos, eles focaram em cérebros de animais, especificamente de porcos.

Os animais para estudo eram conseguidos em um matadouro, mas para garantir a viabilidade dos cérebros, ele e sua equipe precisavam acordar diariamente às 4h30 da manhã para buscar os animais. Assim que as partes “comíveis” era retiradas, os pesquisadores pegavam a cabeça, tiravam o excesso de sangue, colocavam no gelo e corriam para o laboratório. O desafio começava aí. Era preciso remover o crânio sem interferir na arquitetura vital do órgão, como as artérias.

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Durantes vários dias, a pesquisa se limitou a observar a anatomia craniana do porco e entender onde cada parte vital ficava. Apenas no vigésimo cérebro, eles entenderam minimamente a estrutura arterial do animal. No dia 40, eles já sabiam quais vasos sanguíneos precisavam ser fechados e quais partes do crânio precisavam permanecer presas. “Eu me lembro de me sentir mal fisicamente porque acordávamos às 4 da manhã, indo para a cama à meia-noite e fazendo a mesma coisa de novo. Mas, eventualmente, houve progresso”, contou Zvonimir Vrselja, integrante da equipe, ao The New York Times

Passo a passo

Depois de compreenderem o funcionamento do cérebro do porco, os pesquisadores perceberam que a máquina de perfusão, no entanto, não atendia às necessidades da pesquisa. Foi preciso criar uma nova versão do equipamento capaz de se adaptar ao objetivo da pesquisa. O novo mecanismo recebeu o nome de BrainEx.

Com as adaptações realizadas, um passo a passo tinha que ser seguido para garantir que a máquina fosse conectada adequadamente. Primeiro, uma parte do cérebro é liberada do crânio — todas as artérias — com exceção das carótidas – são cauterizadas ou suturadas. Em seguida, o órgão é lavado com sangue residual. Nesta mesma ocasião, líquidos específicos (perfusato) para fazer a perfusão é colocada no equipamento onde é aquecida para ficar na temperatura corporal. O líquido é ainda oxigenado — ou seja, “recebe oxigênio”, importante para manter as células funcionando. 

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Uma vez pronto, a máquina é conectada ao cérebro através das carótidas. Quando conectado, é necessário controlar a pressão e a velocidade em que o líquido deve circular no cérebro para não prejudicar o funcionamento. Ainda é preciso outro equipamento para controlar a temperatura do cérebro.

Primeiros sinais de ‘vida’

Após algumas semanas com o cérebro conectado ao BrainEx, a equipe percebeu que o tecido cerebral interior tinha uma tonalidade cinza úmida — da mesma forma que um órgão vivo. Isso significava que alguma função celular havia sido restaurada. Algumas novas tentativas foram feitas para verificar os resultados — que se confirmaram. 

Apesar de a função celular não indicar vida, os pesquisadores decidiram testar a atividade elétrica por meio de um equipamento chamado de monitor de índice bispectral (BIS, na sigla em inglês) para medir a “consciência”. Os resultados  são dados em uma escala de zero a 100, onde zero é ausência de atividade elétrica, enquanto de 90 a 100 indica função cerebral completa. Uma pessoa sob efeito de anestesia geral apresenta 40 a 60, ou seja, não haverá resposta a estímulos, como dor, por exemplo. 

Os cérebros do porcos marcaram dez. “Esse nível não está associado a nenhum tipo de cognição. O cérebro é considerado totalmente inativo. Morto”, explicou Stefano Daniele, outro pesquisador envolvido no estudo, ao The New York Times. Apesar disso, questões éticas surgiram. Estariam eles trazendo vida ao cérebro do animal? Um estudo deste ano, por exemplo, mostrou que indivíduos em coma profundo — que estão na faixa dos 10 pontos — são capazes de se comunicar. Na época dos resultados do teste, a equipe ainda não sabia disso, mas achou que deveria dar uma pausa na pesquisa para avaliar a situação. 

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Algum tempo depois, os pesquisadores foram aconselhados a procurar um especialista em avaliações intracranianas. O especialista utilizou um equipamento de eletrocorticografia (ECoG) para verificar a atividade elétrica no cérebro dos porcos. Os resultados mostraram não haver atividade espontânea — e que o valor mostrado pelo teste anterior poderia ter sido causado por uma interferência elétrica produzida pela máquina. 

Assim, o estudo foi retomado.

Virou notícia

Apesar de tentar manter a pesquisa em sigilo por medo da repercussão, uma de suas apresentações no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) foi transformada em artigo científico e publicada no MIT Technology Review em 2018. Em poucas horas, a pesquisa circulou o mundo através da imprensa. Isso fez com que a equipe recebesse diversos e-mails. Algumas das mensagens eram de pessoas que ofereciam seus cérebros para estudo, outras sugeriam empresas que pudessem estar interessadas em financiar a pesquisa. Mas a verdade, segundo Sestan, é que elas não pareciam entender realmente do que se tratava a investigação.

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Publicação dos resultados

O novo estudo mostra o progresso encontrado pela equipe: a perfusão pode ser mantida por até seis horas, conseguindo restaurar a função metabólica para a maioria dos cérebros dos porcos. “Eu comecei na esperança de ser capaz de rastrear conexões. Mas, nos últimos três anos, o que aconteceu foi que o projeto realmente se tornou mais sobre a morte do que qualquer coisa que tenha a ver com o conectoma”, comentou Sestan.

Os resultados mostram possibilidades. A possibilidade de testar drogas usando apenas órgãos. A possibilidade de disponibilizar, no futuro, uma versão portátil que possa ser usada em cenários de guerra, onde um soldado ferido precisa proteger as funções cerebrais. Possibilidades que ainda precisam ser estudadas. O foco da equipe no momento é entender como as células cerebrais podem ser salvas após grandes eventos cardíacos, mas sem nenhuma perspectiva de testes em humanos. Os pesquisadores, entretanto, não negam que possam existir cientistas que queiram criar equipamentos capazes de funcionar em cérebros humanos.

Enquanto isso, outros cientistas ressaltam a necessidade de criar diretrizes éticas para lidar com os avanços. “Novas diretrizes são necessárias para estudos relativos à preservação ou restauração de cérebros inteiros porque os animais usados ​​para essa pesquisa poderiam terminar em uma área cinzenta — não viva, mas não completamente morta”, escreveram uma equipe de pesquisadores em artigo publicado na Nature.

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